Conjur - O fim da unipessoalidade temporária nas sociedades contratuais não limitadas

Conjur - O fim da unipessoalidade temporária nas sociedades contratuais não limitadas

Em seu artigo 57, XXIX, "d", a Lei 14.195 revogou expressamente o inciso IV do artigo 1.033 do Código Civil, que previa como hipótese de dissolução da sociedade a falta de pluralidade de sócios não reconstituída no prazo de 180 dias.

Essa revogação estava acompanhada de uma revisão na redação do artigo 981 do Código Civil para constar que uma sociedade poderia ser composta por uma ou mais pessoas, em linha com a alteração realizada para as sociedades limitadas pela Lei 13.874/2019, a Lei da Liberdade Econômica, agora estendendo a unipessoalidade também para os demais tipos societários previstos no código.

Ocorre que essa alteração de redação do artigo 981 foi objeto de veto presidencial, junto de diversos outros artigos da Lei 14.195, o que terminou por nos deixar com o seguinte cenário: 1) a falta de pluralidade de sócios deixou de ser uma cláusula expressa de dissolução das sociedades; e 2) o artigo 981 ainda prevê que o contrato de sociedade deverá ser celebrados por pessoas, o que não possibilitaria a constituição de sociedade por uma única pessoa, exceto no caso das limitadas, conforme informado acima.

Diante desse cenário surgem as seguintes dúvidas: o que irá acontecer quando um sócio falecer ou se retirar da sociedade? Não existindo mais o limite de 180 dias a sociedade poderá se manter unipessoal por prazo indeterminado? Em se mantendo unipessoal essa sociedade estará irregular em violação ao artigo 981? Deverá ser aplicado o artigo 206, I, "d", da Lei das SA para permitir a recomposição até a próxima assembleia geral ordinária? Deverá ser permitida a constituição de qualquer tipo de sociedade por apenas um único sócio já que a falta de pluralidade não é mais causa de dissolução?

Começando pelo último questionamento, entendo não ser possível defender esse entendimento em face da manutenção da redação original do artigo 981 que ainda prevê a pluralidade de pessoas no ato de contratar sociedade, não havendo como se defender no presente caso uma revogação tácita deste artigo pela revogação do inciso IV do artigo 1.033, à semelhança do que se buscou fazer com a Eireli. Então, mantida a redação original, não há que se falar em constituição de sociedades contratuais com um único sócio, exceto no caso da sociedade limitada, por expressa disposição legal.

Já que falamos que isso não se aplica à limitada, é bom delimitar o problema que estamos tratando. Essa situação irá impactar as sociedades chamadas de Simples Pura e as sociedades em nome coletivo. Não irá impactar as sociedades em comandita simples pela estruturação obrigatória desse tipo com duas categorias de sócios, o que impede a sua unipessoalidade.

Diante disso, o problema em verdade se concentrará nas sociedades Simples Pura, visto que quase não encontramos mais exemplares de sociedades em nome coletivo.

Poderíamos então aplicar a estas sociedades o quanto previsto no artigo 206, I, "d", da Lei de SA? Tive a oportunidade de ouvir a defesa dessa hipótese do brilhante professor Sérgio Campinho em evento realizado pela Escola de Formação de Advocacia Empresarial, para quem esse seria o entendimento correto, retomando o entendimento aplicado pelos tribunais antes do advento do Código Civil de 2002.

Com a devida vênia, ousarei discordar do professor Campinho, vez que o entendimento jurisprudencial em questão estava baseado no quanto previsto no artigo 18 do Decreto 3.708/1919, que previa a aplicação subsidiária da lei das sociedades anônimas às sociedades por quotas de responsabilidade limitada, e, ainda, para fins da chamada sociedade civil (hoje denominada sociedade simples), o artigo 1.399, V, do Código Civil de 1916 previa como causa de dissolução da sociedade a renúncia realizada por qualquer dos sócios nas sociedades por prazo indeterminado, não existindo portanto espaço para aplicação, nesse tipo societário, das normas da sociedade anônima.

Como ficarão então essas sociedades?

Para responder a essa pergunta temos de analisar mais detidamente a norma que foi revogada. Em uma primeira leitura, a conclusão mais óbvia a se chegar é de que foi retirada do ordenamento jurídico a dissolução da sociedade por unipessoalidade e que, a partir de agora, caso ficassem reduzidas a um único sócio, as sociedades não mais precisariam ser dissolvidas.

Entretanto, olhando mais detidamente para a norma podemos concluir que em verdade esta não se constituía em uma cláusula de dissolução em si mesma, mas em um permissivo legal, para que as sociedades pudessem, temporariamente, serem reduzidas a um único sócio, e que, caso ultrapassado o limite temporal de 180 dias, as mesmas seriam dissolvidas.

Nunca existiu a autorização legal para constituição ou manutenção de sociedade com apenas um único sócio, excepcionalmente permitia-se, por esse curto prazo de 180 dias, que essa unipessoalidade existisse, e, não sendo complementado o quadro social, a sociedade era punida com a dissolução.

Ocorre que esse permissivo foi revogado e a conclusão a que se chega é que não é mais permitido, no âmbito das sociedades simples e das sociedades em nome coletivo, a unipessoalidade, ainda que temporária.

Não poderá, consequentemente, o registro de empresas e, em maior quantidade, o registro civil de pessoas jurídicas, registrar atos societários dos quais resultem a unipessoalidade sem que no mesmo ato seja imediatamente recomposta a pluralidade de sócios, visto não existir mais a previsão legal que autorizava a unipessoalidade temporária.

Essa é a consequência desejada pelo legislador? Não, mas é a consequência decorrente da aplicação das normas jurídicas vigentes, a quem, em nome da segurança jurídica, devemos plena obediência.

Poder-se-ia questionar, diante da interpretação proposta, como ficariam por exemplo os casos de exercício de direito de retirada e de falecimento do sócio. Tais sócios não iriam sair da sociedade até que o sócio remanescente recompusesse a pluraridade, visto não ser possível arquivar os atos que geram unipessoalidade temporária?

Em verdade esse problema é aparente, pois, após o CPC/15, não resta qualquer dúvida quanto à qual seja a data de resolução da sociedade em relação ao sócio que se retirou ou que faleceu, sendo o primeiro 60 dias após a notificação de retirada e o segundo na data do óbito, conforme previsto no artigo 605 do diploma processual.

Portanto, a impossibilidade de realizar o registro do ato sem a necessária recomposição da pluralidade de sócios não afeta os efeitos da retirada ou falecimento do sócio.

Com relação à produção de efeitos perante terceiros, diante do falecimento esse é um efeito necessário do evento morte, não havendo como questionar a produção de efeitos posteriores ao falecimento do sócio, por absoluta impossibilidade jurídica.

Já com relação ao exercício do direito de retirada, o registro empresarial já procede a anotação no cadastro da empresa da saída do sócio mediante o arquivamento da notificação de retirada após o transcurso do prazo de 60 dias, providência esta que deverá ser também adotada pelo registro civil de pessoas jurídicas, permitindo, assim, a produção de efeitos perante terceiros, mesmo que não se possa realizar o registro da alteração contratual.

Nesses casos, uma vez realizada a anotação de falecimento ou da notificação de retirada do sócio, a sociedade estará irregular até que o sócio remanescente arquive alteração recompondo a pluralidade de sócios.

Dessa forma, nosso entendimento é de que, após a revogação do artigo 1.033, IV, do Código Civil pela Lei 14.195, não subsiste mais em nosso ordenamento a possibilidade de sociedades simples e sociedades em nome coletivo realizarem o arquivamento de atos societários que resultem em unipessoalidade, ainda que temporária, devendo a junta comercial e os cartórios de registro civil de pessoas jurídicas rejeitarem tais arquivamentos por violação ao quanto disposto no artigo 981 do Código Civil, que ainda exige que sociedade seja composta por pessoas, no plural.

Fonte: Conjur