(da série Registros sobre Registros n. 426)
Des. Ricardo Dip
1.237. Continuemos a percorrer, em reiteração −ainda que de maneira bastante resumida−, o tema da legitimação de posse, cuja extinção atrai o averbamento previsto no item 27 do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, de 1973.
Vigente a Lei imperial 601, de 1850, expedida ao tempo da Carta constitucional de 1824, tratando aquela da legitimação de posse, eclodiu no Brasil, em 1889, o golpe militar que instituiu a forma republicana de governo, ao qual sobreveio, em 1891, a primeira de uma série de constituições. Essa, a de 1891, não cuidou da legitimação possessória, mas, isto sim, referiu-se às terras devolutas, que já se consideravam no art. 3º da aludida Lei 601, de 1850:
«São terras devolutas:
§ 1º As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, ou municipal.
§ 2º As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.
§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei.
§ 4º As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta Lei.»
A propósito dessas terras, lia-se no art. 64 da primeira Constituição republicana: a Constituição de nossa primeira República dispôs:
«Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.
Parágrafo único - Os próprios nacionais, que não forem necessários para o serviço da União, passarão ao domínio dos Estados, em cujo território estiverem situados.»
Preservou-se a vigência da Lei imperial 601 −não custa dizer que foi prática habitual do governo republicano copiar as normas imperiais, dando-lhes novos números. Acontece que o art. 83 da Constituição de 1891 assim dispôs: «Continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis do antigo regime no que explícita ou implicitamente não forem contrárias ao sistema do Governo firmado pela Constituição e aos princípios nela consagrados».
Foi só com a Constituição de 1946 que se alçou ao plano constitucional a legitimação de posse. É relevante considerar o que, a propósito, consta de seu art. 156, apontando o objetivo da «fixação do homem no campo».
Lê-se nesse dispositivo:
«Art. 156 - A lei facilitará a fixação do homem no campo, estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das terras públicas. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas empobrecidas e os desempregados.
§ 1º - Os Estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas, que nelas tenham morada habitual, preferência para aquisição até vinte e cinco hectares.
(…)
§ 3º - Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar, por dez anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, trecho de terra não superior a vinte e cinco hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele sua morada, adquirir-lhe-á a propriedade, mediante sentença declaratória devidamente transcrita.»
O que se buscava −em harmonia com o já antes considerado na lei imperial− era desestimular a migração para zonas urbanas, beneficiando o enraizamento social, é dizer, aqui me valendo das lições de Simone Weil, a participação real e natural dos homens, na existência de uma coletividade que preserva a herança de seu passado e a esperança de seu porvir. Hoje já se sabe bem que a falta desse enraizamento −o enracinement de Simone Weil− deu causa a uma excessiva mobilização do solo que, com isso, bem o observou Juan Vallet de Goytisolo, deixou de ser o locus natural de habitação das famílias, fomentando-se a migração urbana para proveito da industrialização, de que resultaram, em palavras de Justus Hedemann, o endividamento, a pulverização do solo e o egoísmo da terra.
Mais uma vez quero reproduzir uma lição de sabedoria que ditou Ramón María Roca Sastre e que verto livremente ao idioma português:
«(…) a propriedade imóvel sempre constituirá o solo nacional e será o assento da família (órgão semipúblico). Nela deverá apreciar-se um valor de afeição, de história familiar e de linhagem, e terá de ver-se, sobretudo tratando-se da propriedade rural, o aspecto da propriedade instituição, mais que o da propriedade simplesmente econômica. O afã de mobilizar o solo atende a este último aspecto (posição que só excepcionalmente, p.ex., tratando-se de habitações familiares, merece ter-se em conta), esquecendo-se o institucional. Hoje, em vista da função social da propriedade, vê-se a necessidade de arraigar no solo a família rural, de assentar no terreno de cultivo o proletariado agrícola, de combater o absenteísmo e o êxodo da mão de obra para a cidade.»
É esse um ensinamento sobre o qual devemos meditar.
A Constituição de 1967, com seu art. 164, ainda sem se referir expressamente à moradia habitual dos posseiros, indicou, entre as condições da legitimação de posse, as terras correspondentes que se tivessem tornado produtivas pelo trabalho individual do possuidor e também pelo de sua família.
Por sua vez, a Constituição de 1969 também versou a matéria em seu art. 171: «A lei federal disporá sobre as condições de legitimação da posse e de preferência para aquisição, até cem hectares, de terras públicas por aqueles que as tornarem produtivas com o seu trabalho e o de sua família», repetindo o constante do texto constitucional de 1967.
Averbe-se, a propósito, a crítica que a essa norma constitucional dirigiram Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari, observando a impropriedade da alusão às «terras públicas», porque as suscetíveis de legitimação são especificamente as devolutas.
Prosseguiremos.