(da série Registros sobre Registros, n. 384)
Des. Ricardo Dip
1.151. Vimos já na exposição anterior que a previsão textual do averbamento da extinção, mediante cancelamento, dos ônus e direitos reais −objeto do item 2º do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, de 1973− alberga uma dada amplitude em seu correspondente significado normativo.
Em exame sistemático da mesma lei deve logo extrair-se que o só fato de prever-se a averbação do cancelamento por extinção dos ônus e direitos reais não cabe, exercitando-se o argumento a contrario, negar possam existir outras hipóteses de averbação referível a cancelamento.
Bastaria ver, a título ilustrativo, o que consta do item 27 do inciso II do apontado art. 167: aí se prevê o averbamento da extinção da legitimação de posse (o que se faz por meio de cancelamento lato sensu −na verdade, propriamente, um encerramento).
Sequer se pensaria reduzido o preceito à categoria dos direitos reais. Cogite-se, a propósito, da averbação, por meio de cancelamento, da extinção da penhora, do arresto, do sequestro ou do processo de tombamento de imóveis (item 27 do inc. II do art. 167 da Lei 6.015).
De resto, o caráter genérico do item 2º do inciso II desse art. 167 evidencia-se da previsão específica do cancelamento, p.ex., de hipoteca (rectius: do registro de hipoteca; art. 251 da Lei 6.015), de registro do compromisso de compra e venda (art. 251-A), da servidão (melhor: do registro da servidão; art. 256).
Para rematar, põe-se notório esse referido caráter geral quando se lê, na Lei 6.015, que o cancelamento −que se há de efetuar mediante averbação (art. 248)− por referir-se «a qualquer dos atos do registro» (art. 249).
1.152. Vejamos agora um aspecto do texto do dispositivo legal em exame, que diz:
«Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:
(…)
II - a averbação:
(…)
2) por cancelamento, da extinção dos ônus e direitos reais.»
Parece, nesse enunciado, que o adjetivo «reais» se atribui tanto a um quanto a outro dos substantivos «direitos» e «ônus». Sendo assim, o que aí tem referência é somente o ônus real.
Será mesmo isso?
O termo «ônus», com sua acepção de gravame, encargo, incumbência, obrigação, et reliqua, não se limita à espécie real −que «pesa sobre uma coisa» (De Plácido e Silva)−, abrangendo também outra espécie, a do ônus pessoal, de que disse o mesmo De Plácido e Silva, no Vocabulário jurídico:
«Assim se entendem [refere-se aos ônus pessoais] os ônus tributários (impostos), ou outros encargos derivados, propriamente, dos contratos, em que se assumem obrigações de natureza pessoal.»
Parece atualmente provável que os ônus tributários sejam, entre nós, ônus pessoais, à luz do que dispõe o art. 130 do vigente Código Tributário Nacional:
«Os créditos tributários relativos a impostos cujo fato gerador seja a propriedade, o domínio útil ou a posse de bens imóveis, e bem assim os relativos a taxas pela prestação de serviços referentes a tais bens, ou a contribuições de melhoria, sub-rogam-se na pessoa dos respectivos adquirentes, salvo quando conste do título a prova de sua quitação.
Parágrafo único. No caso de arrematação em hasta pública, a sub-rogação ocorre sobre o respectivo preço» (o destaque não é do original).
Outrossim, embora, em nosso direito vigente, os ônus meramente contratuais não pareçam atrair-se de modo obrigatório pelo registro de imóveis −nada obstante, frise-se, conforme se queira adotar uma dada perspectiva sobre o regime da multipropriedade, possa ser a divisão do tempo de uso pelos condôminos uma hipótese de ônus pessoal que se leva ao ofício imobiliário−, há casos, ainda que muito estritos, em que ônus, manifestamente pessoais, são levados ao registro de imóveis (p.ex., as penhoras, os arrestos e os sequestros imobiliários −item 5º do inc. I do art. 167 da Lei 6.015).
Outras hipóteses −acerca das quais há, no entanto, muita controvérsia− são, v.g., a do registro «dos contratos de locação de prédios, nos quais tenha sido consignada cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada» (item 3º do inc. I do art. 167), a da averbação «do contrato de locação, para os fins de exercício de direito de preferência» (item 16 do inc. II do art. 167).
Prevalece no direito brasileiro o entendimento de que as locações tenham natureza pessoal. Todavia, ao menos da primeira dessas duas apontadas hipóteses de inscrição do pacto locatício −a do registro cujo núcleo é a cláusula de vigência em caso de alienação−, parece emergir o caráter propter rem do ônus.
Já na segunda hipótese −a do averbamento da locação, para fins de preferência aquisitiva−, a questão é mais controversa. Considerado o disposto no art. 520 do Código civil em vigor −«O direito de preferência não se pode ceder nem passa aos herdeiros»−, ter-se-ia de admitir o caráter pessoal do ônus. Todavia, quanto aos imóveis urbanos, diante do que enuncia o art. 2.036 do mesmo Código civil −«A locação de prédio urbano, que esteja sujeita à lei especial, por esta continua a ser regida»−, ter-se-ia de buscar na legislação especial (por agora, a Lei 8.245, de 18-10-1991) o que a propósito se prevê: «Estando o imóvel sublocado em sua totalidade, caberá a preferência ao sublocatário e, em seguida, ao locatário. Se forem vários os sublocatários, a preferência caberá a todos, em comum, ou a qualquer deles, se um só for o interessado».
A pergunta é: seria isso bastante para concluir que pelo caráter propter rem do ônus, nessa hipótese do item 16 do inciso II do art. 167 da Lei de registros públicos?
Se considerarmos o que dispõe o art. 33 da Lei de locações, parece provável que se deva reconhecer a natureza propter rem do ônus relativo ao exercício de direito de preferência nas locações. Lê-se, com efeito, nesse apontado art. 33: «O locatário preterido no seu direito de preferência poderá reclamar do alienante as perdas e danos ou, depositando o preço e demais despesas do ato de transferência, haver para si o imóvel locado, se o requerer no prazo de seis meses, a contar do registro do ato no cartório de imóveis, desde que o contrato de locação esteja averbado pelo menos trinta dias antes da alienação junto à matrícula do imóvel».
Assim −e como quer que seja−, para concluir, parece-me que o termo «ônus» inscrito no item 2º do inciso II do art. 167 da Lei 6.015 abrange tanto o de caráter real (em muito predominante), quanto o de caráter pessoal.