Do direito real de habitação (conclusão)

(da série Registros sobre registros n. 218)

                                                           Des. Ricardo Dip

 

862. O Código civil brasileiro de 2002, depois de incluir expressamente a habitação em seu rol de direitos reais (inc. VI do art. 1.225), refere-se a ela nos arts. 1.414 a 1.416, além de aludi-la em seu art. 1.831: “Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar”; relembre-se que esse direito real de habitação do cônjuge supérstite não exige inscrição no ofício imobiliário, constituindo-se ex vi legis (cf. n. 7 do inc. I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973).

 

O texto dos referidos arts. 1.414 a 1.416 praticamente se decalca sobre o do arts. 746 a 748 do Código civil de 1916, com uma alteração na ordem das palavras no art. 1.415 (em que se lê: “qualquer delas que sozinha habite a casa”, onde antes, no art. 747 do Código Beviláqua, lia-se: “qualquer delas, que habite, sozinha, a casa”) e na substituição, no art. 1.416, do adjetivo plural “concernentes” (que havia no Código de 1916, art. 748: “as disposições concernentes ao usufruto”) pelo adjetivo também “relativas” (“as disposições relativas ao usufruto”).

 

Isso beneficia o atual aproveitamento da doutrina que, a propósito, já se formara ao tempo da normativa anterior.

 

863. Tema dos mais relevantes quanto ao direito real de habitação é o de mensurar as necessidades do habitador para assim concluir acerca da extensão da habitatio.

 

À míngua de disposição expressa do Código civil de 2002 acerca dessas necessidades do habitador –e de sua família–, parece de todo razoável recorrer ao preceito que, no art. 1.412 do mesmo Código, trata das necessidades do usuário e de sua família, manifesta a similitude que há entre o uso e a habitação, desta que se fala ser um uso limitado.

 

Esse art. 1412 do Código de 2002 prevê que “o usuário usará da coisa e perceberá os seus frutos, quanto o exigirem as necessidades suas e de sua família” (caput), avaliando-se essas necessidades –pessoais e familiares– conforme a condição social e o lugar onde viver o usuário (§ 1º) e firmando-se a noção das necessidades familiares em atender às do cônjuge, dos filhos solteiros e das pessoas do serviço doméstico do mesmo usuário (§ 2º). Essa norma repetia a do art. 744 do Código de 1916, levando Carvalho Santos a entender excluídas do preceito, para os fins de verificação das necessidades do usuário, “os pais ou quaisquer outros ascendentes; os filhos casados; os netos e outros descendentes mais afastados; os colaterais e afins” (Código civil brasileiro interpretado, vol. IX, p. 479). É provável que, a esta altura, a compreensão literal dispositivo, assim a de Carvalho Santos, enfrente o conceito alargado que se tem concedido à ideia de família –já, por exemplo, Carlos Roberto Gonçalves, neste capítulo, observa que não importa a natureza do vínculo de parentesco, se consanguíneo ou civil, ou se a família é constituída pelo casamento ou em virtude de união estável, e sustenta nada impedir “que o ato constitutivo do direito real [de uso] possa contemplar, mediante acordo de vontades, ainda outras pessoas, além das indicadas” (Direito civil brasileiro, vol. V, p. 515).

 

O antigo Código civil argentino –o Código de Velez Sarsfield–, depois de, no art. 2.592, dizer que “el uso y el derecho de habitación son regidos por los títulos que los han constituido, y en su defecto, por las disposiciones siguientes” –inclinando-se, pois, a alguma preferência em prol da autonomia das vontades contratantes–, previu nos artigos sucessivos:

 

–        “Art. 2.593: El uso y la habitación se limitan a las necesidades personales del usuario, o del habitador y su familia, según su condición social. La familia comprende la mujer y los hijos legítimos y naturales, tanto los que existan al momento de la constitución, como los que naciesen después, el número de sirvientes necesarios, y además las personas que a la fecha de la constitución del uso o de la habitación vivían con el usuario o habitador, y las personas a quienes éstos deban alimentos.”

 

–       “Art. 2.954: Las necesidades personales del usuario serán juzgadas en relación a las diversas circunstancias que puedan aumentarlas o disminuirlas, como a sus hábitos, estado de salud, y lugar donde viva, sin que se le pueda oponer que no es persona necesitada.”

 

–        “Art. 2.955: No se comprenden en las necesidades del usuario las que sólo fuesen relativas a la industria que ejerciere, o al comercio de que se ocupare.”

 

Avulta o que indicava o art. 2.954 –que Velez Sarsfield remontou à doutrina de Demolombe e de Proudhon–, ao reportar-se a hábitos, estados de saúde e lugar onde viva o usuário (ou o habitador), pondo em destaque, portanto, a consideração das circunstâncias singulares em que se encontre o titular do direito sobre o imóvel alheio. Essa atenção à realidade das coisas –e à diversidade delas, certo que o universo criado é o mundo de uma quase infinita diversitas rerum que estampa, com a variedade, a participação dos entes criados na perfeição infinita de Deus– permite que a habitação cumpra seu desiderato social.

 

É isso, aliás, o que mais mereceria considerar-se no Brasil contemporâneo, ou seja, a finalidade do direito real de habitação para fomentar o instituto no âmbito das próprias atividades sociais –é dizer, dos particulares (indivíduos e sociedades privadas)–, já que, por manifesto, não pode o estado, a despeito de sua proclamação constitucional, encarregar-se de si próprio com as extensas necessidades habitacionais de larga parte da população. Talvez uma adequada política de incentivos fiscais pudesse contribuir para o incremento do instituto da habitatio, atenuando a escassez de moradias e, em dada medida, reduzindo os gastos estatais.

 

864.   Como já ficou dito, a constituição do direito real de habitação deve observar, em princípio, as disposições que se refiram ao usufruto (art. 1.416 do Código civil de 2002: “São aplicáveis à habitação, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto”) –matéria já antes examinada nesta série Registro sobre registros (cf. itens 841 a 843), aplicando-se, quanto à extinção, o previsto no art. 1.410 do mesmo Código, salvo quando a seu inciso VIII, que trata do não uso (que não é causa extintiva da habitatiovidē Orlando Gomes e Carlos Roberto Gonçalves).

 

Da mesma sorte que ocorre com o usufruto e o uso, se a constituição do direito real de habitação exige o registro do título institutivo, também sua extinção deve ser inscrita, averbando-se o que, com designação imprópria, o Código civil considera cancelamento da inscrição: “O usufruto [ou, para o caso, a habitação] extingue-se, cancelando-se o registro no Cartório de Registro de Imóveis” (caput do art. 1.410, que se aplica à habitatio por força do que dispõe o art. 1.416 do mesmo Código civil).

 

O Código de Velez Sarsfield –revogado pelo novo Código Civil e Comercial argentino de 2014– também dispunha, no art. 2.969, que as causas de extinção do usufruto se aplicariam ao uso e à habitação. O Código atual, no art. 2.519, prescreveu que à habitatio se apliquem, de modo supletivo, as normas relativas ao usus, com que, de maneira mais notória, faz saltar-se à vista que, sendo o uso um usufruto restrito, um usufruto em miniatura, a habitação é um uso restrito, um uso em miniatura, ou seja, no fim e ao cabo, um usufruto restritíssimo, não mais que um usufruto bastante diminuto.