(da série Registros sobre registros n. 220)
Des. Ricardo Dip
867. A Lei brasileira 6.015, de 1973, prevê no item 9º do inciso I de seu art. 167 o registro stricto sensu “dos contratos de compromisso de compra e venda, de cessão deste e de promessa de cessão, com ou sem cláusula de arrependimento, que tenham por objeto imóveis não loteados e cujo preço tenha sido pago no ato de sua celebração, ou deva sê-lo a prazo, de uma só vez ou em prestações”.
- Decompondo esse dispositivo, são seus elementos, para admitir-se o correspondente registro em sentido restrito:
(i) tratar-se de compromisso (ou promessa) de compra e venda, de sua cessão ou de sua promessa de cessão,
(ii) relativos a imóvel não loteado (nada influindo que se trate só do terreno ou de nele existir edificação; cf., a propósito, Wilson de Souza Campos Batalha, Comentários à lei de registros públicos, 2.ed., II, p. 571);
(iii) não importando, por fim, haja nos títulos institutivos cláusula de arrependimento, que o preço tenha sido pago à vista ou, pendente, se divida em prestações, bem como que o instrumento contratual tenha origem pública ou particular (vidē, por muitos, Afrânio de Carvalho, Registro de imóveis, 2.ed., p. 96).
- 868. O Código civil brasileiro de 1916 não continha norma alguma acerca desse compromisso. Isso não impediu que, em vista de os contratos estarem in numero aperto, houvesse forte disputa sobre a natureza da promessa de compra e venda, com o reflexo correspondente no cabimento ou não de sua execução compulsória; de um lado, uma corrente sustentava que o compromisso era simples obrigação de fazer; de outro lado, em contraposição, afirmava-se sua equivalência com a compra a venda, para admitir-lhe plena eficácia executória. Não faltou mesmo uma tese intermediária, no sentido de que, instrumentando-se por via notarial, a promessa tivesse execução coativa, não assim, entretanto, quando seu instrumento fosse de origem privada (posição de Carlos Fulgêncio da Cunha Pinto, conforme a síntese de Serpa Lopes, Tratado dos registos públicos, III, item 474).
Foi o Decreto-lei 58/1937 (de 10-12) que inaugurou o tratamento legal do tema, embora, de maneira restrita, essa normativa apenas se referisse à hipótese do pagamento a prazo do preço aquisitivo do imóvel: “As escrituras de compromisso de compra e venda de imóveis não loteados, cujo preço deva pagar-se a prazo, em uma ou mais prestações, serão averbadas à margem das respectivas transcrições aquisitivas, para os efeitos desta lei” (art. 22; a ênfase gráfica não é do original). Essa restrição textual suportou, no entanto, a expansão que se lia na parte final do art. 22 do regulamento do Decreto-lei 58, qual seja o Decreto 3.079/1938 (de 15-9): “As escrituras de compromisso de compra e venda de imóveis não loteados, cujo preço deva pagar-se a prazo, em uma ou mais prestações, serão averbadas à margem das respectivas transcrições aquisitivas, para os efeitos desta lei, compreendidas nesta disposição as escrituras de promessa de venda de imóveis em geral” (o itálico não está na origem). Daí a observação de Serpa Lopes: “Tal inovação [refere-se ele à parte final do art. 22 do Decreto 3.079] trouxe a possibilidade da averbação de todo e qualquer contrato de promessa de compra a venda de imóveis, pouco importando a fixação do preço à vista ou a prazo” (o.c., III, item 475). E que esse averbamento ensejasse a constituição de um direito real se extraia da letra do art. 5º do Decreto-lei 58 e do art. 5º do mesmo Decreto 3.079: “A averbação atribui ao compromissário direito real oponível a terceiros, quanto à alienação ou oneração posterior, e far-se-á à vista do instrumento do compromisso de venda, em que o oficial lançará a nota indicativa do livro, página e data do assentamento”.
Posteriormente, a Lei 649, de 11 de março de 1949 (art. 1º), espancou eventual dúvida que ainda subsistisse acerca do cabimento da averbação do compromisso em que o preço aquisitivo fosse pago à vista, dando-se nova redação ao art. 22 do Decreto-lei 58: "Os contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromisso de compra e venda de imóveis não loteados, cujo preço tenha sido pago no ato da sua constituição ou deva sê-lo em uma ou mais prestações desde que inscritos em qualquer tempo, atribuem aos compromissários direito real oponível a terceiros e lhes confere o direito de adjudicação compulsória, nos termos dos artigos 16 desta lei e 346 do Código do Processo Civil” [esse referido art. 346 era do Código processual de 1939, que assim dispunha: “Recusando-se o compromitente a outorgar escritura definitiva de compra e venda, será intimado, se o requerer o compromissário, a dá-la nos cinco (5) dias seguintes, que correrão em cartório”; por sua vez, em sua redação original, o mencionado art. 16 do Decreto-lei 58 previa: “Recusando-se os compromitentes a passar a escritura definitiva no caso do art. 15, serão intimados, por despacho judicial e a requerimento do compromissário, a dá-la nos 10 dias seguintes à intimação, correndo o prazo em cartório”).
Outra alteração textual se fez no art. 22 do Decreto-lei 58, acomodando-o ao então emergente Código de processo civil (o de 1973) o disposto no art. 1º da Lei 6.014/1973 (de 27-12): “Os contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromisso de compra e venda e cessão de direitos de imóveis não loteados, cujo preço tenha sido pago no ato de sua constituição ou deva sê-lo em uma, ou mais prestações, desde que, inscritos a qualquer tempo, atribuem aos compromissários direito real oponível a terceiros, e lhes conferem o direito de adjudicação compulsória nos termos dos artigos 16 desta lei, 640 e 641 do Código de Processo Civil”. Essas regras dos arts. 640 e 641 do Código processual civil de 1973 foram revogadas com a Lei 11.232/2005 (de 22-12; art. 9º).
O Código civil brasileiro de 2002 incluiu disposições acerca da promessa de compra e venda de imóveis (cf. arts. 1.225, 1.417 e 1.418). Não é de pensar, para logo, que a falta de alistamento dessa promessa no rol de direitos reais de nosso Código civil de 1916 (art. 674) inibisse, simpliciter, a natureza real dessa promessa, contanto que inscrita no ofício imobiliário. Já, de uma parte, como se tem insistido, embora caiba ao legislador, num sistema clausurado de enumeração de direitos reais, instituir os que entenda de admitir, não se impede caiba aos intérpretes extrair da normativa os direitos que, mais além da mera letra, tenham efetivamente essa natureza real. De outra parte, o art. 5º do Decreto-lei 58/1937 –com a extensão instituída com o art. 22 do Decreto 3.079– parecia já bastante a alicerçar solidamente o caráter real do direito de promessa de compra e venda, tal como afirmado na doutrina de Serpa Lopes.
Prosseguiremos.