(da série Registros sobre registros n. 201)
Des. Ricardo Dip
815. A vigente Lei brasileira 6.015 prevê o registro stricto sensu do usufruto imobiliário, em norma que também se refere aos direitos de uso de imóvel e de habitação (item 7º do inc. I do art. 167).
Comecemos aqui por tratar do vocábulo usufruto que provém da conjunção das palavras latinas usus e fructus, de que também resultaram, no idioma português, os termos uso froito (séc. XIV) e usofruito (séc. XII -cf. Antônio Geraldo da Cunha).
Denomina-se usus o atributo dominial (mas desmembrável da propriedade) de servir-se de uma coisa; ou seja, de usá-la, porque usar uma coisa é empregá-la para, direta e principalmente, satisfazer alguma necessidade ou utilidade dos homens; e se se diz “direta e principalmente” é porque a história humana testemunha o contínuo uso das coisas com os objetivos de adoração, reverência e agradecimento a Deus, uso esse com que, pois, não se busca satisfazer, directe e de modo principal, uma necessidade ou utilidade dos homens, mas –sem desconhecer o caráter impetratório que também se assume com tal uso– o que principal e diretamente com ele se pretende é adorar, reverenciar, agradecer a Deus. Para não deixar essa consideração sem um exemplo pontual, observemos que se pôde provar, já ao tempo dos caçadores primitivos (os da era paleolítica), a existência de práticas rituais mágico-religiosas, com que, na muito autorizada lição de Mircea Eliade, “podiam indicar a epifania de uma potência sagrada ou de um ‘mistério’ cósmico” (in História das crenças e das ideias religiosas -Da idade da pedra aos mistérios de Elêusis).
O usus da coisa é servir-se dela, mas não é também perceber-lhe os frutos, não é dela adquirir lucro; já isso corresponde a outro dos atributos do domínio, o fructus (desfrute, fruição), é dizer, o atributo do recebimento dos frutos da coisa. Esses frutos podem ser naturais (como os são os produzidos diretamente pela própria coisa, ainda que nisto haja alguma participação da indústria humana: colheitas, lã, leite) ou civis (rendas pecuniárias, alugueres -vidē Álvaro D’Ors).
Daí que o usus fructus –usus et fructus, usus fructusque (cf. Ernesto Faria)– corresponda, no plano semântico, à junção dos atributos dominiais de uso e de fruto ou fruição. Isso já se lia em consagrada passagem das Institutas, em que assentou o jurisconsulto Paulo: usus fructus est ius alienis rebus utendi fruendi salva rerum substantia –usufruto é o direito de usar as coisas alheias e de delas desfrutar, sem que se lhe altere a substância.
Em um breve parágrafo, deixemos aqui indicada a dificuldade prática para o discrimen entre o mero uso e o usufruto. Em dado tempo do direito romano, o usus compreendia, além do direito de utilizar as coisas alheias, o de perceber-lhes os frutos, desde que de acordo com as necessidades do usuário e, possivelmente (cf. abaixo), as de sua família. Assim, contanto não houvesse intuito comercial, caberia incluir no uso a colheita de lenha, hortaliças, legumes, frutas, flores, e ainda a utilização de água para satisfazer as necessidades cotidianas, tanto as do titular do uso, quanto as de sua família: tudo isso, advirta-se, segundo alguns juristas romanos –entre eles, Sabino, Próculo, Labeone–, porque para outros não falta a crítica de que essa ampliação conceitual tenha sido obra de compiladores dos textos jurídicos de Roma, que nestes teriam feito interpolações (vidē, a propósito, para algum complemento, as referências, brevitatis studio, de Pietro Bonfante, Mario Bretone e, entre nós, de Alexandre Corrêa e Gaetano Sciascia, estes últimos para quem “a faculdade de usar a pouco e pouco se amplia até abranger as necessidades da família do titular”).
816. O Código civil brasileiro em vigor, diversamente do que ocorreu com o Código de 1916, não possui dispositivo conceitual do usufruto. No Código anterior, por mais que completada por outras disposições, a noção de usufruto estabeleceu-se no art. 713: “Constitui usufruto o direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade”; assim é que outros artigos do Código tratam de explicitar o objeto material do usufruto, objeto que pode constituir-se por “um ou mais bens, móveis ou imóveis, (…) um patrimônio inteiro, ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os frutos e utilidades” (art. 714) e, salvo disposição em contrário, pode “estender-se aos acessórios da coisa e seus acrescidos” (art. 716).
A norma do art. 713 do Código civil de 1916 calcou-se, mais remotamente, no conceito de usufruto que estava nas Institutas, mas, de maneira próxima, tinha já os exemplos de vários Códigos, também de algum modo apoiados na definição romana, Códigos instituídos na Europa (França, Itália, Espanha, Portugal, Áustria, Suíça, Alemanha), outros na América hispânica (Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Bolívia, Venezuela e México) –foi o que apontou Clóvis Beviláqua nos Comentários.
Dois aspectos, porém, parecem reclamar atenção nesse art. 713 do Código civil brasileiro precedente: primeiro, o de que nele se empregue o verbo fruir que engloba, porém, tanto o conceito de usar, quanto o de desfrutar (gozar, fruir, pois, em sentido estrito). O segundo aspecto a considerar é o de que o mesmo art. 713 não adotou a cláusula final da definição romana do usufruto: salva rerum substantia; só adiante, no art. 729 do Código de 1916, é que se atenderá à salvaguarda substancial da coisa usufruída: “O usufrutuário, antes de assumir o usufruto, inventariará, à sua custa, os bens, que receber, determinando o estado em que se acham e dará caução, fidejussória ou real, se lha exigir o dono, de velar-lhe para conservação, e entregá-los findo o usufruto” (o itálico não é do original).
Carvalho Santos disse, a propósito, que a lei impõe, nesse dispositivo do art. 729, “a obrigação de conservar a substância da coisa, tanto na matéria, quanto na forma”.
817. Direito real de uso e gozo (ou fruição) de coisas alheias, o usufruto parece ter surgido, historicamente, em Roma, no século III a.C., e seu objetivo inicial foi o de proporcionar assistência a alguns integrantes da família do instituidor. Daí não só seu caráter personalíssimo, é dizer, que se escolhessem os beneficiários, mas também seus atributos de inalienabilidade e intransmissibilidade, além de o usufruto, de logo, ter nascido com a nota de temporariedade, porque, assim o observou Max Kaser, “só com esta limitação temporal se considera suportável que a propriedade do onerado (dominus proprietatis), por causa de um direito tão extenso como o que compete ao usufrutuário, seja esvaziada até à mera nuda proprietatis”.
No mesmo sentido, Jörs e Kunkel observaram o quão era, de fato, pouco de suportar que o direito do proprietário existisse privado do uso e do desfrute da coisa, da qual só conservava a substância –distante de sua posse direta. E, entre nós, o Conselheiro Lafayette fez ver que a temporariedade do usufruto diz com a organização do domínio, de sorte que é atributo inderrogável pela vontade dos contratantes.
Tal o veremos um tanto mais detidamente a seu tempo, o direito brasileiro, já com o Código civil de 1916 (incs. I e III do art. 739), adotara a temporária duração do usufruto, o que veio a reafirmar-se com o Código civil de 2002 (incs. I e III do art. 1.410).
Sublinhe-se que, não se dera a temporariedade do usufruto, estaria em xeque a natural tendência centrípeta da propriedade.