Registro da promessa de permuta imobiliária (quarta parte -conclusão)

(da série Registros sobre Registros, n. 361)

Des. Ricardo Dip

1.114. Vamos nesta exposição concluir o breve exame que, nesta série, foi devotada às recentes meditações do Magistrado Josué Modesto Passos acerca das recentes mudanças legislativas que dão agora expresso amparo ao registro da promessa de permuta imobiliária.

O tema que se revela mais agudo nessas reflexões de Josué Modesto é o do discrimen entre, de uma parte, a taxatividade e a tipicidade dos direitos reais, e, de outra parte, a (discutível) taxatividade e a tipicidade no plano formal, designadamente do registro de imóveis.

Antes de considerar mais especificamente essas duas categorias −taxatividade e tipicidade−, parece convir observar que o registro público tem, quanto aos imóveis, a missão que a posse tem em relação aos móveis. São ambos, posse e registro, meios de visibilidade do domínio.

Mas, se a posse ostenta uma visibilidade física entre o possuidor e a coisa possuída, da qual resulta a visibilidade −ou distinção− jurídica, social e política, já o registro é apenas dotado dessa «visibilidade» jurídica, social e política.

A importância da visibilidade dominial está em que por ela se assinala e procura assegurar-se a distinção das propriedades, i.e., saber o que é de um e o que é de outro, garantindo-lhes a fruição e a disponibilidade correspondentes.

Todavia, se a posse −por ser um fenômeno relacional sensível entre o possuidor (presuntivo dominus) e a coisa− soluciona parte de seus problemas pelo só aspecto de ser fato sensível (por mais que alguns problemas persistam: pense-se na posse indireta, na posse de má-fé, na detenção, etc.), de sua parte o registro só pode solver seus problemas pela via da referência textual (ou mais amplamente, referência sinalizadora, para assim abranger as possibilidades de meios não literais de assinalação).

É bem por isso, por essa dificuldade de resolução dos problemas de relacionamento entre a «visibilidade» registral e a realidade das coisas, que devem considerar-se as categorias da tipicidade e da taxatividade (ou exemplaridade) dos registros. Em outros termos, se o registro fosse um sistema integralmente aberto, seria inidôneo para solucionar seus problemas sintáticos (relação registro-coisa).

Note-se, porém, que o contraditório de um sistema registral integralmente aberto não é um sistema integralmente cerrado (scl., taxativo), mas, isto sim, um sistema com abertura limitada, com se verá um tanto melhor adiante.

É cediço que, no caso brasileiro (e de larga parte dos ordenamentos jurídicos) os direitos reais observam o princípio da taxatividade −ou princípio do numerus clausus. Essa indicação taxativa não é exclusiva dos direitos reais: temo-la também, p.ex., quanto aos delitos.

Assinale-se que não se trata de uma taxatividade apenas quantitativa −taxatividade numérica−, senão que essa taxatividade corresponde a uma «tipologia taxativa» ou «taxatividade tipológica», o que já nos remete ao plano da especificidade ou, quando menos, do acidente de qualidade. Tal o disse Rui Pinto Duarte, a tipicidade dos direitos reais «é sinônimo de taxatividade»); e Oliveira Ascensão referiu-se à «tipologia legal taxativa de direitos reais».

Diversamente, no campo dos direitos das obrigações, sem embargo de uma tendência de tipificação, prevalece a possibilidade da «improvisação de cada um» (Orlando de Carvalho). Ou seja, ao revés dos direitos reais, em que estes se caracterizam por traços bem, prévia e legalmente definidos, já os direitos das obrigações são suscetíveis de configuração livre. Bastaria observar um exemplo diferenciador: os direitos reais não podem existir sem inerência ou inseparabilidade de uma coisa determinada, especificada, individualizada, ao passo em que os direitos das obrigações podem versar sobre coisas genéricas e incertas.

Seria teoricamente possível pensar em taxatividade sem tipologia no campo dos direitos obrigacionais, mas dificilmente −ou mesmo impossivelmente− se poderia cogitar disso em relação aos direitos reais. Se o registro de imóveis fosse estritamente reduzido à missão de inscrever e publicar direitos reais sobre imóveis, não se recusaria a identificação entre o numerus clausus desses direitos e do registro. Acontece que, num sistema de registro de títulos e em que, para mais, pode admitir-se a inscrição de causas geradoras de direitos obrigacionais, é forçoso distinguir a taxatividade (e a tipologia) dos direitos reais e admitir que o registro não possui essas mesmas taxatividade e tipologia.

Isso não significa, entretanto, que não possa haver −no plano da hipótese− um sistema registral tipológico taxativo. Bastaria, para atender ao bem comum, que a lista fosse prudentemente ampla. Mas tenha-se em conta que só haveria possível identificação entre a taxatividade tipológica dos direitos reais e a do registro com a condição de o sistema ser declarativo.

Isto é manifesto: um sistema que registra títulos −é o caso brasileiro− e constitui direitos não pode ser, por evidente, um sistema taxativo calcado nos direitos reais.

Resta saber como evitar que, apartado do numerus clausus, o sistema registral não se converta em um sistema integralmente aberto, fadando-se ao caos.

O critério que parece ajustar-se a instituir um sistema registral limitadamente aberto está em que apenas se admitam à inscrição (i) títulos idôneos à constituição de direitos reais; e, estes agora desde que previstos legalmente em numerus clausus, (ii) títulos que já se configuram como direitos obrigacionais.

Para atender à primeira dessas indicações −a dos títulos idôneos à constituição de direitos reais−, o item 48 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015/1973 dispôs serem registráveis (stricto sensu) «negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis, ressalvadas as hipóteses de averbação previstas em lei e respeitada a forma exigida por lei para o negócio jurídico, a exemplo do art. 108 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)».

Pode implicar-se com a redação pouco ortodoxa do dispositivo −esse «a exemplo do art. 108 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)»−, convenha-se, é uma raridade legística. Pode estranhar-se, não menos, que esse item 48 torne, em rigor, desnecessários quase todos os itens que o precedem no rol do inciso I do art. 167 da Lei de Registros Públicos. Mas não se pode negar o bom critério que aí norteou o legislador.

Em boa hora, pois, vieram à luz essas meditações do Juiz Josué Modesto Passos.