Registro da promessa de permuta imobiliária (terceira parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 360)

Des. Ricardo Dip

1.113. Seguíamos pela trilha dos itens do inciso I do art. 167 da Lei 6.015, desta série "Registros sobre Registros", quando dois temas pareceram recomendar um breve excurso: o primeiro desses temas, em que nesta exposição se prossegue, diz respeito ao registro da promessa de permuta imobiliária, assunto que, com a novidade da Lei 14.382, foi objeto de interessante meditação −aqui comentada− do Magistrado paulista Josué Modesto Passos. O segundo dos temas, que se apreciará em futura exposição, refere-se a uma inconstitucionalidade na Lei geral das desapropriações.

Prossigamos concisamente nesse primeiro assunto de nossas considerações, examinando a parte derradeira das reflexões de Josué Passos.Diz ele que há um

«(…) problema que já se conhece e que desde sempre é cruz e delícia dos que se dedicam à rudis indigestaque moles do direito registral imobiliário: precisamente, que se há entender por taxatividade e tipicidade, no plano do direito material (= dos direitos reais), e que se deve entender por taxatividade, tipicidade e exemplaridade, no plano do direito formal (= do registro de imóveis)?».

Essas questões −sobretudo quando os conceitos se confrontam, de um lado, seus correspondentes papeis no plano do direito real, e, de outro, o que lhes toca no âmbito do direito registral imobiliário−, repete-se: essas questões são volumosas, cruas e indigestas (assim o disse Josué Passos), que, por isso mesmo, não as quis responder −embora qualificado para a investida−, preferindo invocar uma passagem do Orlando Furioso, de Ariosto, adiando para outro lugar e hora a destrinça da matéria: «problemi superbi, vo’ che per l’altro canto si riserbi».

Menos prudente será esta exposição. Vediamo noi. Incursionemos nestas questões.

A primeira observação que parece convir diz com a aguda distinção que Josué Passos salientou acerca dos direitos reais, de uma parte, e do registro, de outra parte. Ora, bem pode objetar-se que todo mundo sabe, todo mundo vê que são coisas diversas, de maneira que o discrimen apontado por nosso autor é de todo evidente, sua sentença, apenas uma referência ordinariamente convencional.

Todavia, se apreciamos a história, entre nós, da relação entre os direitos reais e o registro imobiliário, compreenderemos que a discussão sobre o tema da taxatividade do registro stricto sensu (é dizer, da lista do inc. I do art. 167 da Lei 6.015) levou a solução errônea exatamente porque se trasladou, sem mais, para o campo do registro, a taxatividade dos direitos reais.

Isso implicitava −quando até mesmo não se dizia de maneira expressa− que, de modo essencial, o registro imobiliário inscreveria apenas direitos reais. Ora, essa afirmação pode ser verdadeira para algum sistema; é-o, ao menos tendencialmente, para sistemas em que os direitos reais imobiliários se constituem à margem do registro, ou seja, em que o registro somente possui função declarativa. Mas não é um juízo verdadeiro quanto ao registro de imóveis no Brasil. Entre nós, prevalece, em muito, o caráter constitutivo dos direitos reais sobre imóveis. É bem por isso que nosso registro é registro de títulos e não de direitos.

Acontece que, acompanhando a americanização da linguagem, alguns de nossos doutrinadores têm feito referência a que nosso ofício imobiliário é um sistema de registro de direitos, valendo-se da expressão «registro de direitos» com a acepção americanista (que distingue neste quadro o mero depósito de documentos), abdicando-se de ver que o registro imobiliário brasileiro é tipicamente um registro de títulos, ou seja, um registro de causas materiais aquisitivas dependentes, em geral, de inscrição constitutiva dos direitos. Em outras palavras, entre nós, ordinariamente, não se registram direitos, mas, isto sim, títulos que, com o registro, convertem-se em direitos reais.

Se assim é, a taxatividade dos direitos reais −o que vem de par com sua afirmada legislatividade (é dizer, só a lei pode instituir direitos reais)− não equivale a uma hipotética taxatividade dos registros (stricto sensu), ou, por outra, a conjecturável taxatividade desses registros haveria de corresponder não ao numerus clausus dos direitos reais, mas a uma eventual taxatividade dos títulos. Mas os títulos −classificando-se no âmbito das obrigações− estão previstos em numerus apertus.

Antes de prosseguir, convém que façamos uma paragem na história dessa discussão, para entender o motivo pelo qual se afirmou, com alguma predominância transitória, a taxatividade do rol do inciso I do art. 167 da Lei 6.015. Para isso, temos de visitar as décadas de 80 e 90 do século passado, sobretudo aquela.

O problema prático −e é fácil compreender a que se chegaria− estava no alargamento da pretensão receptiva do registrável no ofício imobiliário. Entendia-se (mal, é verdade) que a afirmação da exemplaridade da lista do aludido inciso I do art. 167 da Lei de registros públicos levaria à admissão de um registro de não importa o que dissesse respeito a imóveis. Registro de posse, registro de comodato, et reliqua.   

Ora, diante disso −e o problema era prático-prático, esta é a verdade−, havia uma primeira resposta ao alcance das mãos: o registro de imóveis somente diz respeito a direitos reais imobiliários. Mas essa solução falhava perante a previsão legal de registro de citação, de arresto, de penhora, de sequestro.

À deficiência dessa resposta adveio a opção de afirmar a taxatividade da lista do referido inciso I do art. 167, só suscetível de alargar-se (isto foi um acréscimo quase imediato à tese inicial) por meio de normativa extravagante.

A solução aparentava exitosa. Evitou-se a avalanche de pretensões registrais inconvenientes.

Nada obstante, era manifesto o déficit doutrinário, e logo os fatos começaram a revelar as rachaduras da tese.

Dois problemas surgiram com rapidez: o da alienação fiduciária de imóvel em garantia e o da multipropriedade.

Era preciso enfrentar novamente a questão, e isso se fez com uma simplicidade surpreendente. É curioso como a maior parte das verdades, uma vez descoberta, é algo claro e simples.

Admitiu-se que a relação do inciso I do art. 167 da Lei 6.015 não é taxativa, nem responde apenas ao tema dos direitos reais. Mas é uma lista aberta para os registros relativos aos direitos reais imobiliários, embora uma lista fechada para os direitos obrigacionais, salvo quando, por exceção, haja preceito singular expresso para a inscrição correspondente.

Essa fórmula foi um achado. Resolveu tanto o excesso, quanto a deficiência do registro.   

Continuaremos.