Lei da desapropriação: uma inconstitucionalidade

(da série Registros sobre Registros, n. 362)

Des. Ricardo Dip

1.115.   Conforme havíamos indicado, esta série «Registros sobre Registros» abriria um parêntese para tratar de novidades relativas a temas já nela antes mais amplamente versados.

Vamos a isso, cuidando aqui de uma questão referente à Lei geral das desapropriações −o Decreto-lei 3.365, de 21 de junho de 1941−, tema sobre o qual também escrevi pequeno artigo para o boletim eletrônico INR dirigido por Antônio Herance.

Ao instituir-se, entre nós, ao início da década de 90, um dos sucessivos inexitosos planos econômicos estatais, criou-se uma ampla «desapropriação pecuniária» (era disso, com efeito, que se tratava, por mais que se entoasse com os tons e semitons da retórica), e, por evidente, era uma desapropriação prévia indenização em dinheiro.

As normas constitucionais esperariam melhores tempos, mais oportunas disposições da realidade sócio-política e alguma boa tendência burocrática.

Mais recentemente, algo do mesmo gênero se deu no contexto da política de enfrentamento sanitário, com a instituição, em alguns municípios, de «comissões» dotadas de poderes legislativo e policial, comissões, saliente-se, não eleitas (ou seja, «sovietes»). Também aqui, as normas constitucionais que se relegassem para depois da crise na saúde.

Todavia as normas constitucionais devem ser sempre observadas, e hão de o ser, sobretudo e exatamente, nos tempos de crise, nos quais não pode impor-se a mera raison d'état.

Isso posto, vejamos agora um caso de enfrentamento entre, de uma parte, os princípios da superioridade do interesse público e da função social da propriedade, e, de outra parte, um direito constitucional que se assegura aos particulares. Saliente-se, neste passo, que a mais egrégia função social da propriedade está na distinção do que é de um e do que é de outro; o estado é um importante custódio dessa distinção. sobremodo por meio do registro público.

O art. 2º da Lei 14.421, de 20 de julho de 2022, incluiu novo parágrafo no art. 34-A do Decreto-lei 3.365, de 1941 -a Lei geral da desapropriação: «Após a apresentação da contestação pelo expropriado, se não houver oposição expressa com relação à validade do decreto desapropriatório, deverá ser determinada a imediata transferência da propriedade do imóvel para o expropriante, independentemente de anuência expressa do expropriado, e prosseguirá o processo somente para resolução das questões litigiosas».

Em uma ação expropriatória ajuizada pelo Município de São Bernardo, com o deferimento, em primeira instância, de tutela de evidência com determinação de imediata transferência da propriedade do imóvel expropriando, interpôs agravo de instrumento o titular registral de seu domínio, e o recurso, distribuído livremente, foi apreciado pela 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (Ag 2208761-36.2022), sendo-lhe Relator o Des. Luís Francisco Aguilar Cortez. Entendendo ele vulneradas, na decisão de primeiro grau, as normas dos arts. 5º, inciso XXIV, e 182, § 3º, da Constituição nacional de 1988, propôs à Turma julgadora a remessa dos autos ao Órgão Especial da Corte, instaurando-se, desse modo, incidente de arguição de inconstitucionalidade do disposto no § 4º do art. 34-A do Decreto-lei 3.365.

Colheram-se manifestações das Presidências da República e do Senado Federal, bem como da Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, as primeiras inclinadas em prol da compatibilidade vertical do dispositivo impugnado, ao revés do entendimento da Procuradoria-Geral de Justiça, que apontou a inconstitucionalidade formal e material da norma avessada.

O feito foi levado à apreciação e decisão da Corte constitucional paulista na sessão de 6 de dezembro de 2023 (IAI 0011064-07.2023), acolhendo-se, então, em julgamento uniforme, a indicada declaração incidental de inconstitucionalidade, nos termos do voto da Relatora, Des. Silvia Rocha.

Entendeu, por primeiro, o voto de relação da Des. Silvia Rocha que a norma do § 4º do art. 34-A da Lei geral de desapropriação padece de inconstitucionalidade formal, porque, embora permita a Constituição federal emendas ao texto originário de medidas provisórias encaminhadas ao Congresso pelo Presidente da República (cf. § 12 do art. 62: «Aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, esta manter-se-á integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto»), diz o voto: esse «poder de emenda é, contudo, limitado», exigindo-se, segundo decisão plenária do STF, «pertinência temática entre a emenda e o texto original da medida provisória, sob pena de violação do princípio democrático e do devido processo legislativo». Prossegue o mesmo voto de relação:

«Tal restrição decorre do fato de a medida provisória ser espécie normativa de competência privativa do Presidente da República (artigo 62, caput e § 3º, da Constituição Federal), a quem, logicamente, compete definir, com exclusividade, o seu objeto.

Definido o objeto da medida provisória, pelo Presidente da República, ele não pode ser alterado pelo Poder Legislativo, nem mesmo em processo de conversão em lei, que só admite emendas relativas à mesma matéria.

Neste caso, objetivamente, não há pertinência temática entre a Medida Provisória nº 1.104/2022 e o artigo 2º da Lei nº 14.421/2022, que incluiu no artigo 34-A do Decreto-lei nº 3.365/1941 o parágrafo impugnado.

Com efeito, a Medida Provisória nº 1.104/2022, convertida na Lei nº 14.421/2022, dispunha, somente, sobre a Cédula de Produto Rural (cédula representativa de promessa de entrega de produtos rurais) instituída pela Lei nº 8.929/1994, e sobre o Fundo Garantidor Solidário (garantia de operações financeiras vinculadas à atividade empresarial rural) criado pela Lei nº 13.986/2020, matérias sem nenhuma relação com a desapropriação por utilidade pública.»

E, neste aspecto ainda estritamente formal, concluiu a Des. Silvia Rocha: «Houve, assim, abuso do poder de emenda parlamentar, que implica inconstitucionalidade, por vício formal, do § 4º do artigo 34-A do Decreto-lei nº 3.365/1941, introduzido na ordem jurídica pela Lei nº 14.421/2022».

Seria já isso suficiente para declarar-se a incidental invalidade da norma refertada, mas não se esquivou o Órgão Especial do Tribunal paulista em prosseguir na apreciação do assunto, agora na perspectiva de sua incompatibilidade material com a Constituição de 1988.

Indicou o voto condutor proferido pela Des. Silvia Rocha que a disciplina constitucional vigente exige, para a legitimidade das expropriações, que o pagamento do preço, em dinheiro, seja prévio e justo, ao passo em que, prossegue o voto, «o § 4º do artigo 34-A do Decreto-lei nº 3.365/1941 (…) autoriza a transferência da propriedade do bem desapropriado para o ente público antes mesmo da definição do valor da indenização devida ao expropriado e sem que ele com isso consinta, o que não pode ser admitido, por traduzir forma transversa de confisco de bens fora das hipóteses constitucionalmente previstas (artigo 243, parágrafo único)».

Indenização justa −continua o voto de relação− «não é, necessariamente, a que a Administração afirma ser, mas a indenização livremente pactuada entre o expropriante e o expropriado, ou a fixada em processo judicial, mediante a produção de prova técnica com a garantia do contraditório e da ampla defesa». Ora,

«O processo judicial disciplinado pelo Decreto-lei nº 3.365/1941 destina-se, justa e exatamente, à produção de prova pericial, para a fixação do valor justo da indenização devida ao expropriado, visando à sua efetiva compensação e à perfectibilização do ato expropriatório.

Se bastasse à Administração informar e pagar ao expropriado o valor indenizatório que, na sua ótica, fosse adequado – tese defendida pela Presidência do Senado Federal –, não haveria por que existir processo judicial para a apuração do justo valor.

A existência de processo judicial revela que o expropriado não concordou com o valor ofertado pelo expropriante, na esfera administrativa, para a desapropriação, mas o considerou injusto, daí a necessidade do processo judicial, com produção de prova técnica para apuração e posterior definição da justa indenização

Lembra a Des. Silvia Rocha, enfim, que o adjetivo «prévio», usado na Constituição e no Decreto-lei 3.365, «indica que o pagamento deve acontecer antes da transferência definitiva da propriedade para o ente público, não antes da apuração do justo valor da indenização e da prolação da sentença», e acrescenta: «O pagamento de parte da indenização, pelo expropriante, não corresponde ao pagamento de indenização justa, que, como é evidente, precisa ser integral, e a possibilidade de levantamento de valor incontroverso, pelo desapropriado, não equivale à concordância dele com o preço, tampouco autoriza a transferência do bem ao Estado antes da definição do valor da indenização efetivamente devida

Têm aí os registradores imobiliários algo novo a considerar para sua tarefa de qualificação.