Registro de compra e venda (décima-segunda parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 310)

Des. Ricardo Dip

 

1.032. Dando sequência a nosso capítulo sobre o registro da compra e venda de imóveis, trataremos aqui, ainda, de algumas espécies desse negócio jurídico, matéria que interessa ao registrador −de par com o interesse de notários, advogados e outros juristas que tenham de lidar com o registro de que cuidamos−, porque o texto normativo apenas refere a viabilidade do registro stricto sensu da compra e venda simples e condicional, rendendo ensejo a que o intérprete e quem deva aplicar a lei em casos concretos examine a possibilidade de sua maior ou menor extensão relativamente às várias espécies de compra e venda.

Apreciemos agora, brevemente que o seja, a venda a contento, cuja importância deve assinalar-se na medida em que havemos de dirimir sua aplicação ao campo dos negócios imobiliários.

Venda a contento é a que se pactua com uma expressa cláusula de que o negócio não se faça ou, se feito, desfaça-se, se o comprador não se satisfizer com a coisa objeto da aquisição. 

Já no direito romano se conhecia a venda a contento −pactum displicentiæ−, ascendente antigo dos negócios cuja cláusula adjeta abranja também tanto a hipótese de uma venda ad gustum (venda sob degustação, ou sob agrado), quanto de uma venda à prova. A primeira, venda ad gustum, não se efetiva antes da degustação (p.ex., pense-se na compra de uma partida de vinhos ou de azeites); a segunda, venda ad probationem, tem o negócio concluído, mas subordinado a prova futura.

A matéria, que, entre nós, já havia sido objeto do Código civil de 1916 (arts. 1.144 et sqq.), foi tratada também pelo vigente Código de 2002, lendo-se, à partida, em seu art. 509: "A venda feita a contento do comprador entende-se realizada sob condição suspensiva, ainda que a coisa lhe tenha sido entregue; e não se reputará perfeita, enquanto o adquirente não manifestar seu agrado". 

Sublinhe-se que o mesmo Código atual distingue, de um lado, a venda a contento, e, de outro, art. 510, a venda à prova; mas não há diferença quanto a seus regimes, assim dispondo o art. 511: "Em ambos os casos [venda a contento e venda ad probationem], as obrigações do comprador, que recebeu, sob condição suspensiva, a coisa comprada, são as de mero comodatário, enquanto não manifeste aceitá-la".

Em rigor, e isto já o havia advertido Orlando Gomes, à luz do Código de 1916, não tem sentido prático a distinção entre a venda a contento e a venda ad probationem (ou sob experiência), de maneira que o art. 511 do Código de 2002 apenas recolhe o que corresponde à realidade das coisas, embora melhor parecesse excluir o discrimen a que se lançou o art. 510 do mesmo Código.

Trata-se, portanto, com a venda a contento de um negócio subordinado a condição suspensiva, tal se vê da letra mesma do art. 509 do Código civil em vigor. 

Não era assim no Código anterior, pois seu art. 1.146 dispunha que a cláusula condicionante na venda a contento poderia ser suspensiva ou resolutiva, embora, ordinariamente, fosse suspensiva a condição aposta ao negócio a contento, ressalvada a manifestação diversa das vontades contratantes. Essa norma não se acolheu pelo Código de 2002, que restringiu esse pacto adjeto −e mencionou a restrição em três dispositivos (arts. 509, 510 e 511)− a seu efeito suspensivo.

Assim, com esse exclusivo submetimento do negócio de compra e venda à cláusula de suspensão de efeitos, parece superar-se alguma controvérsia que pudera existir quanto a sua aplicação aos negócios com imóveis. 

De fato, salvo houvesse previsão explícita de prazo para o comprador afirmar sua insatisfação com a compra e venda, a pendência de uma cláusula resolutiva −tal se admitia no Código de 1916− levava a uma situação de dúvida para o tráfego imobiliário. Já, no entanto, restrita a clausulação na venda a contento ao âmbito da suspensividade negocial, não se põe este risco de turbação do tráfico predial, pois os sucessivos adquirentes sempre poderão exigir, antes do negócio aquisitivo, que o comprador a contento manifeste sua satisfação com a compra. 

Na prática, pode haver situações que sugiram alguma experiência com dados imóveis a justificar sua negociação a contento. Pense-se, por exemplo, na aquisição de prédio para exploração comercial em lugar que, em princípio, não se saiba convir ou não; ou na aquisição de um sítio, visando a atividades produtivas −cuja terra deva experimentar-se. São situações da via a que se deve conformar o direito, tanto se volta, como deve, a fomentar a realização do justo e a satisfazer os interesses do bem comum. 

Note-se que, à diferença da venda condicional comum, a venda a contento tem sua cláusula condicionante firmada na potestatividade do comprador. Isto a especifica em relação ao quadro comum da compra e venda sob condição. É que, na venda a contento, a condição está entregue ao arbítrio do comprador.  

Reitere-se que a venda a contento, observada a restrição pela cláusula só suspensiva, não se realiza enquanto o comprador não declara sua satisfação com o negócio. Leia-se, a propósito, o que consta do já antes aqui referido art. 511 do Código civil de 2002: "(…) as obrigações do comprador, que recebeu, sob condição suspensiva, a coisa comprada, são as de mero comodatário, enquanto não manifeste aceitá-la".

Desta maneira, recebendo o registrador título de venda a contento de um dado imóvel, há de registrar o negócio, enunciando a cláusula suspensiva, certo que a Lei 6.015, como temos visto, prevê a inscrição da compra e venda condicional, e a venda a contento é uma venda condicional.

O comprador deverá manifestar sua consenso ou dissenso com a coisa objeto do negócio a contento, e o Código preferiu a via de abdicar da fixação de um prazo legal para que o comprador se manifeste. O prazo para tanto pode constar do título, e neste caso vence em seu decurso, ou demandar, à falta de sua previsão no pacto, alguma diligência do vendedor, como consta do art. 512 desse mesmo Código: "Não havendo prazo estipulado para a declaração do comprador, o vendedor terá direito de intimá-lo, judicial ou extrajudicialmente, para que o faça em prazo improrrogável".

Silente o comprador, tanto que vencido o prazo assinado no contrato da venda a contento, ou silente o comprador dentro no tempo indicado na intimação judicial ou extrajudicial para sua manifestação −ou, ainda, por fim, haja declarado seu contentamento (ou descontentamento)−, o registrador, à vista dos títulos confirmadores, averbará ou a satisfação do comprador, que, pois, implementa a condição, ou sua insatisfação com o negócio, ensejando a ineficácia do título.