Registro de compra e venda (oitava parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 306)

Des. Ricardo Dip

 

1.028. Ainda no capítulo referente ao registro imobiliário da compra e venda, apreciaremos agora a hipótese em que o objeto material desse contrato seja imóvel de propriedade de terceiro.

Há uma sentença inaugural que pode servir-nos de critério comum para a compra e venda de bem alheio. Trata-se de uma lição de Carvalho de Mendonça: "Em princípio −disse ele− a venda de coisa alheia não é inadmissível, quando o vendedor esperar adquiri-la, ou pode livremente adquiri-la" (o.c., item 143).

Esse entendimento, porém, não escapou de forte controvérsia. Bastaria lembrar, a propósito, que acenando a julgado cônsono do STF, Clóvis Beviláqua, em comentário ao art. 1.122 do Código civil brasileiro de 1916, sustentou: "É nula a escritura de compra e venda lavrada ao tempo em que o imóvel pertencia a outrem que não o vendedor (…)". Assim dispõe de modo expresso o Código civil francês: "La vente de la chose d'autrui est nulle: elle peut donner lieu à des dommages-intérêts lorsque l'acheteur a ignoré que la chose fût à autrui" (art. 1.599). 

Prevaleceu entre nós a orientação de que o ajuste de compra e venda de coisa alheia não é nulo, mas apenas, segundo alguns, ineficaz, ou, para outros, anulável. 

Lê-se, a propósito, na doutrina de Orlando Gomes, que, por mais seja intuitiva ideia de que a coisa alienada haja de ser de domínio do vendedor, calha que, no sistema adotado em nosso direito, para o qual a compra e venda gera somente a obrigação de transferir a propriedade da coisa, "nada obsta −disse este jurista− que [o vendedor] efetue a venda de bem que ainda lhe não pertence; se consegue adquiri-lo para fazer a entrega prometida, cumprirá especificamente a obrigação; caso contrário, resolve-se esta em perdas e danos" (Contratos, item 172). 

Por seu lado, Caio Mário da Silva Pereira sustentou a anulabilidade do contrato, impugnando os que, entre nós, estariam a confundir "a possibilidade de convalescimento com a validade do contrato". Para o autor, a compra e venda a non domino é "originariamente ineficaz", superando-se o vício quando se dê a aquisição da coisa pelo alienante ou a ocorrência de usucapião (Instituições de direito civil, vol. III, item 218).

Parece interessante assinalar algo que se passou no direito italiano. Antes ali se estabelecera a nulidade da compra e venda de coisa alheia (art. 1.459 do Código civil de 1865: "La vendita della cosa altrui è nulla: essa può dar luogo al risarcimento dei danni, se il compratore ignorava che la cosa era d'altri"). Essa norma, entretanto, pareceria contender com o então disposto no art. 1.447 do mesmo Código −"La vendita è un contratto, per cui uno si obbliga a dare una cosa e l'altro a pagarne il prezzo"−, de que se extraía a possibilidade de o ajuste não possuir uma função real em ato, restringindo-se a uma obrigação da transferir a coisa. Muito provavelmente em atenção a esse confronto, o Código civil italiano de 1942 afastou a sanção de nulidade da compra e venda de coisa alheia: "Se al momento del contratto la cosa venduta non era di proprietà del venditore, questi è obbligato a procurarne l'acquisto al compratore. Il compratore diventa proprietario nel momento in cui il venditore acquista la proprietà dal titolare di essa" (art. 1.478).

Apenas quando entenda nula a compra e venda de imóvel alheio, hipótese que afastaria, pois, a possibilidade de o contrato confirmar-se ou convalescer, é que poderia o registrador imobiliário qualificar negativamente um título de compra e venda que, à origem, tivesse por objeto material imóvel de terceiro. Com efeito, nulo fosse o negócio jurídico não seria ele suscetível de confirmação, nem de convalescimento pelo decurso do tempo (cf. art. 169 do Código civil brasileiro de 2002).

Calha, entretanto, que o art. 1.268 do mesmo Código civil, depois de prever que, "feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade (…)" (caput), dispõe: "Se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade, considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição". Essa norma −saliente-se− está expressamente referida à alienação de coisas móveis, mas não parece demasia estendê-la aos bens imóveis.

Isto põe à mostra que, excluída a sanção de nulidade, a compra e venda que tenha por objeto material imóvel de domínio de terceiro é questão, no fim e ao cabo, irrelevante para o registro de imóveis.

Foi isto o que concluiu Serpa Lopes: 

"Quais os efeitos da compra e venda de um imóvel alheio, em relação ao Registo de Imóveis?

Trata-se de um ato inteiramente inócuo em face ao dito Registo. De vez que só pelo legítimo proprietário é que a tradição da coisa aliena a propriedade, segue-se que, pela própria força desse preceito, nenhuma transcrição pode ser admitida no Registo de Imóveis, senão provinda de um ato jurídico firmado pelo proprietário da coisa imóvel. 

É necessário que o vendedor da coisa alheia adquira a propriedade do imóvel, e, para que se repute adquirida, é lógico que se requer, preliminarmente, a transcrição do imóvel em seu favor. Só por esse modo se pode operar a aquisição do domínio" (Tratado dos registos públicos, item 526).

A perspectiva que interessa ao registro imobiliário é a que se põe, nesta hipótese de uma aquisição que, segundo o título em sua origem, era a non domino −e a mesma solução deve considerar-se quanto às onerações a non domino− é a que se adota com fundamento no princípio do trato consecutivo (ou, em outras palavras, o que se tem designado de continuidade). Assim, uma vez registrada em seu nome, pelo alienante, a aquisição do imóvel que, à altura do contrato, era de terceiro, compete ao registrador confrontar o título com a legitimação tabular, sem que, uma vez confirmado ou convalescido o negócio, tenha de retroceder ao exame de sua situação inaugural superada.

Na dinâmica negocial, não é raro que se busque a elaboração de escrituras notariais de compra e venda, sendo embora o vendedor apenas promitente comprador do imóvel objeto, sobrevindo a aquisição dominial pelo mesmo vendedor. Nada impede que o tabelião de notas autorize esse título, ainda que, por prudência, deva não somente referir a circunstância aos clientes e até mesmo indicá-la na escritura.

Não é de todo incomum, além disto, que alguém, julgando-se proprietário de um imóvel por meio de usucapião, venda esse imóvel na pendência do processo declarativo dessa aquisição.

Em ambas estas situações, o registrador qualificará o título segundo o tempo de sua apresentação ao ofício imobiliário, que é o tempo da autenticidade da transferência real, sem, pois, regredir ao momento da formação extrarregistral do contrato. 

No direito brasileiro, com efeito, em que a compra a venda não ostenta unidade formal para a transferência do domínio, senão que fragmenta essa aquisição em título e modo (tradição, transcrição), o que cabe ao registrador é considerar o tempo do modo que é o tempo do motus, do movimento da potência aquisitiva (ou seja, do título) por meio da tradição (i.e., registro).