Registro de compra e venda (sétima parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 305)

Des. Ricardo Dip

1.026. Para encerrar esta incursão no tema do registro imobiliária da compra e venda −que, em rigor, melhor se diria uma incursão restrita acerca do contrato−, trataremos, na sequência e de maneira bastante breve, primeiro sobre a compra e venda 

(i) de imóveis futuros, 

(ii) imóveis do domínio de terceiros, 

(iii) de imóveis sob condomínio, 

(iv) de imóveis indivisíveis; 

por fim, examinaremos diferentes modalidades da compra e venda, como o sejam 

(v) a ad corpus

(vi) a ad mensuram

(vii) a clausulada com retrovenda, 

(viii) a venda a contento, (ix) a venda alternativa, 

(x) a venda facultativa, 

(xi) a venda de imóvel com reserva de domínio, 

(xii) a venda com pacto obrigacional de preferência.

1.027. Já se deixou dito que, até por força de norma expressa em nosso vigente Código civil, o objeto da compra e venda pode tanto ser coisa atual, quanto coisa futura (art. 483). Observou-se que, não fosse, entre nós, o disposto no art. 37 da Lei brasileira de parcelamento do solo urbano (Lei 6.766, de 19-12-1979), seria possível juridicamente a compra e venda de lote ainda não parcelado de sua gleba ou somente faticamente dela separado. Também se acenou à vedação constante do art. 426 do mesmo Código civil: “Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva” (art. 426).

Consideremos agora que o art. 481 desse Código, ao tratar de compra e venda, preceitua que "um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa", vale dizer, de coisa existente

Mas isto, o de exigir que a coisa objeto da compra e venda exista, não significa que se recuse a compra e venda aleatória, é dizer que se negue possa bastar a esperança de que a coisa venha a existir; foi o que disse Clóvis Beviláqua, comentando o art. 1.122 do Código civil brasileiro de 1916: "A coisa vendida deve existir no momento da celebração do contrato, mas pode ser coisa que se espera que venha a existir". Veja-se o que, a propósito, ensinou Carvalho de Mendonça:

"(…) a venda de coisa futura é uma venda condicional e, portanto, só obriga o comprador ao pagamento do preço quando a coisa tiver existência, pois que, afinal, não há venda sem objeto.

Seja como for, as coisas futuras podem ser objeto da compra e venda quando se trata de coisa certa, emptio espei.

Assim, se vendo o direito que tenho de colher a safra de meu café no ano próximo, a venda é válida.

O que constitui coisa incerta e por isso excluída deste contrato é a emptio rei esperatæ. Assim, por exemplo, vendendo eu o café que produzirem minhas plantações no ano próximo e acidentes naturais destruírem de todo a safra, o contrato não se forma" (Contratos no direito brasileiro, item 142).

Assinale-se a distinção: a emptio spei é uma compra de esperança ou de probabilidade −assim o diz, p.ex., Gutiérrez-Alviz−, ao passo em que a emptio rei esperatæ é uma compra de coisa futura ou simplesmente indeterminada que se exija venha a existir para que o contrato se atualize. Tenha-se em conta esta diferenciação indicada por Orlando Gomes:

"Na emptio spei, as coisas futuras, que são compradas, podem vir a não ter existência. O exemplo clássico é o do pescador do lanço da rede. Mesmo que nenhum peixe sela colhido, o contrato é válido, pois o que se comprou foi uma esperança. Na emptio rei speratæ, as coisas futuras, que são compradas, devem vir a existir, sob pena de se desfazer o contrato" (Contratos, item 174).

É prontamente avistável a dificuldade −que Orlando Gomes apontou− de dizer, em cada caso, quando a compra e venda é de uma esperança ou da coisa esperada. Embora avessado do critério predominante para a discriminação entre essas espécies, resume-o o autor: "(…) há venda de esperança, se a existência das coisas futuras das coisas futuras depende do acaso; há venda de coisa esperada, se a existência das coisas futuras está na ordem natural". 

Serpa Lopes versa o tema no âmbito específico do direito registral imobiliário, observando que, por sua natureza, "é óbvio que a propriedade imobiliária não se pode considerar suscetível de alienação, como coisa futura" −isto, concede-se, quanto à entidade natural, mas não quanto à caracterização jurídica, se considerarmos a alienação de lotes ainda pendentes de parcelamento. 

Não falta razão ainda a Serpa Lopes quando indica ser conflitiva a falta de existência certa e definida de um imóvel com o indeclinável princípio da especialidade (para até não dizer do princípio da determinação).

Todavia, invocando um exemplo de Cesare Gasca (in Trattato della compra-vendita), Serpa Lopes examina a hipótese da venda de uma casa a ser construída.

Entende este notável jurista brasileiro que essa hipótese não é, "ao menos em relação ao Registro de Imóveis", uma genuína venda de coisa futura. Indica, a propósito, ser necessária, com precedência à venda dessa casa, a alienação do solo em que se projeta edificar essa casa: "(…) a transcrição a ser feita −diz Serpa Lopes− nenhuma relação tem com a coisa futura −a casa a ser construída". E prossegue, observando que o direito de propriedade sobre o terreno é extensivo à construção (acessão) que sobre ele se se erguer (posta à margem a questão de eventual ajusta relativo a direito de superfície).

Há, entretanto, algo que merece, neste passo, alguma consideração. Não falta que, algumas vezes, os contratos de compra e venda imobiliária −referindo-se a uma construção futura− descrevam com caráter principal a acessão e não o solo especificado; neste exemplo, "Mateus vende a José uma casa com dois pavimentos, tantos metros quadrados, etc.". Não haverá impedimento a que essa compra e venda se registre, desde que (i) haja no título a descrição adequada do terreno correspondente, ainda que essa descrição, no plano do mesmo título, seja secundária; (ii) não se faça menção, no registro, da existência −que então ainda é fato contingente− da casa a ser construída; de futuro, edificada, a existência da casa poderá (melhor: deverá) averbar-se na matrícula.

Sublinhe-se, a propósito, que frequenta a praxis registral um erro manifesto, qual o de o inventário da matrícula referir principalmente a acessão e só de maneira secundária o terreno acedido: assim, "uma casa construída no imóvel tal da rua qual, etc.", quando, de maneira adequada, haveria de enunciar-se "o imóvel tal, na rua qual, etc., em que construída uma casa", suposta a regularidade jurídica (incluída a fiscal) da existência da casa.

Isto deve ser deste modo, porque o principal, na perspectiva do registro imobiliário, é o terreno, não a acessão, por evidente. Ocorre que, sob o aspecto econômico, tem-se, de comum, o maior valor proporcional da casa (ou, quando menos, o a ela atribuído), caracterizando-se o que se designa de acessão invertida, de que é exemplo mais notório o das unidades autônomas no condomínio edilício.