Registro de dote (segunda parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 277)

                             Des. Ricardo Dip

 

                       962. Umas referências (ainda que aqui sejam breves) ao dote no direito romano têm razão de ser para o direito brasileiro, porque, assim o observou o Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira, em seu Direitos de família (citado aqui pela 4ª ed., que é de 1945), a legislação nacional, anterior ao Código civil de 1916, era quase totalmente omissa (p. 201, nota), com uma ou outra disposição isolada (id.), de maneira que a matéria do dote era objeto de regência subsidiária pelo direito romano, “com as modificações trazidas pelo uso moderno e pela necessidade de acomodar as suas disposições ao espírito e às peculiaridades do nosso Direito” (id.). O que havia, entre nós, de normativa sobre o dote, antes da Constituição imperial brasileira de 1824 −a saber, o Alvará de 14 de agosto de 1645 e as Leis de 17 de agosto de 1761 e de 4 de fevereiro de 1765−, foi legislação revogada, disse Lafayette, pela Carta política de 1824; posteriormente a essa Constituição do Império, proclamada a república, o Decreto 169-A/1890 (de 19-1), dispôs umas linhas sobre o dote, preceituando no § 9º de seu art. 3º: “Os dotes ou contratos antenupciais não valem contra terceiro: sem escritura pública; sem expressa exclusão da comunhão; sem estimação; sem insinuação, nos casos em que a lei exige”. Saliente é o que o regulamento desse Decreto 169-A não se refere, contudo, à insinuação (ou seja, confirmação) do dote (vidē único do art. 173 do Decreto 370, de 2-5-1890).

                     Se é verdade que o Código civil nacional de 1916 tratou largamente do dote, não menos verdade é que esse Código confirmou a doutrina antes estabelecida no Brasil com amparo no direito romano [a este propósito, confira-se o entendimento de José Bonifácio de Andrada e Silva, nos comentários à acima referida obra do Conselheiro Lafayette; no mesmo sentido, Caio Mário da Silva Pereira dirá que, entre nós, o dote foi “disciplinado no Código Civil de 1916, segundo a concepção romana (…)” (Instituições de direito civil, 1975, vol. 5, item 403)].

                  963. O regime dotal −ou seja, a regência jurídica do dote, segundo as leis e sua concreta instituição convencional− sofreu variações ao largo da história do direito romano. Seu modo mais antigo foi o dos profecticia −dote constituído pelo paterfamilias da mulher−, entregando-se os bens ao marido (ou, estando este submetido ao poder do pai, os bens eram entregues ao mesmo pai; todavia, sobrevindo-lhe a morte, os bens passavam-se ao filho). Quando, diversamente, admitiu-se que o dote poderia constituir-se pela própria mulher ou por outros de seus parentes, tinha-se o dos adventicia (cf., por muitos, Alexandre Correa e Gaetano Sciascia, Jörs e Kunkel, Álvaro D’Ors). Podiam apontar-se ainda o dos recepticia (quando haviam os bens de restituir-se a quem constituíra o dote) e o dos æstimata (caracterizado pela circunstância de que os bens eram, ao tempo da constituição dotal, avaliados em pecúnia).

                     Num dado tempo, os bens dotais eram, no direito romano, tidos por propriedade do marido, mas, já no período republicano, o dote passa a entender-se de domínio da mulher −res uxoria. Lê-se na doutrina de Álvaro D’Ors: “La dote aparece como res uxoria, porque, aunque se haga de la propiedad del marido es «cosa de la mujer», pues ésta puede eventualmente recuperarla; esto determina un régimen especial, con ciertas limitaciones a la disposición de los bienes dotales” (Derecho romano privado, 1997, § 344). Assim também esta elucidativa passagem de Alexandre Corrêa e Gaetano Siascia: “Os escândalos dos frequentes divórcios facilitam o desenvolvimento do princípio jurídico pelo qual quamvis in bonis mariti dos sit, mulieris tamen est [em tradução livre: ainda que os bens dotais sejam do marido, eles, entretanto, são da mulher]. Assim, do ponto de vista técnico, a propriedade do dote é do marido, mas seus poderes são limitados pelo direito; e dissolvendo-se o matrimônio tem que restituir os bens dotais” (Manual de direito romano, 1953, vol. I, § 57). Ao tempo de Justiniano, o dote −que deveria constituir-se da maneira obrigatória− era um patrimônio em favor da mulher casada, reservando-se os bens para seu sustento após a dissolução do matrimônio: “Llegado el momento de la restitución, la dote se entrega, no precisamente a quien la constituyó, sino a la esposa dotada” (Lacruz Berdejo, Derecho de familia, 2010, p. 326).

                      Quanto à sua constituição, o dote romano dividia-se em dotis datio, dotis dictio e dotis promissio; pelo primeiro modo (dotis datio), havia efetiva entrega dos bens ao marido; pelo segundo (dotis dictio) −modo que já se extinguira no direito justinianeu−, havia promessa unilateral de constituir-se; enfim, pelo terceiro modo (dotis promissio), havia também promessa, inicialmente por meio da estipulação (stipulatio), obrigando-se o constituinte a transferir, futuramente, determinados bens.

                 964. Ainda antes da vigência do Código civil brasileiro de 1916, o Conselheiro Lafayette, conjugando o direito romano, as poucas normas lusitanas e nacionais relativas ao instituto do dote e seu uso acomodado aos costumes pátrios, conceituou o dote “a porção de bens incomunicáveis, que a mulher ou alguém por ela, transfere ao marido, para com os frutos e rendimentos provenientes sustentar os ônus do matrimônio, sob a cláusula de restituição e tais bens, dissolvida a sociedade conjugal” (c., § 73). De par com essa noção “rigorosamente jurídica”, Lafayette recolhe outra que, “ainda em linguagem jurídica”, mas em sentido lato −e vulgar−, designa dote “aos bens que a mulher traz para o casal, qualquer seja o regime do casamento”. No mesmo sentido, Carvalho Santos dirá que, em acepção vulgar, “denomina-se dote tudo o quanto a mulher recebe de ascendentes, ou de terceiro, por ocasião do casamento, convindo notar que o dote, tomado nesta acepção, se comunica com o marido se o regime é o da comunhão” (Código civil brasileiro interpretado, 1977, vol. V, p. 115).

                      O primeiro e mais estrito desses conceitos emitidos por Lafayette, com precedência ao Código civil de 1916, integrava-se de quatro notas essenciais: (i) a de que os bens dotais não se comunicam; este é importante ponto diferencial entre o dote, em sentido estrito, e o dote, em acepção lata; no regime dotal, uma parcela do patrimônio do casal −trazida pela mulher− permanece separada, ainda que sob a gestão do marido; Caio Mário da Silva Pereira observou, com razão, que o dote constitui “modalidade particular de separação dos bens”, por se tratar de “porção de bens incomunicáveis, móveis ou imóveis, que o marido recebe e conserva indisponíveis” (Instituições… , item 403); (ii) a de que esses bens que compõem o dote estão sujeitos, como ficou dito, à administração do marido; (iii) a da destinação dos frutos e rendimentos obtidos com a gestão marital dos bens visando ao sustento familiar; (iv) a da cláusula de restituição dos bens à mulher, a seus herdeiros ou ao instituidor do dote.

                     Perseverou o Código de 1916 na linha apontada por Lafayette, acrescentando, embora, três requisitos de forma: (i) a descrição dos bens integrantes do dote; (ii) sua estimativa; (iii) a expressa declaração de que esses bens se submetem ao regime dotal (cf. Clóvis Beviláqua, Código civil dos Estados Unidos do Brasil, ed. histórica de 1979, tomo I, p. 681). Caio Mário agrega outro pressuposto: que seja o dote constituído antes do casamento.

              Prosseguiremos.