(da série Registros sobre Registros, n. 276)
Des. Ricardo Dip
961. Dispondo o art. 2.039 do vigente Código civil brasileiro que “o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido”, preserva sua importância a indicação do item 27 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015/1973, que prevê o registro stricto sensu do dote.
Largamente versado no Código civil nacional de 1916 (arts. 278 a 309), o dote não foi mencionado de maneira específica no Código de 2002, isto, adivinha-se, em virtude de sua rara acolhida nos costumes brasileiros (cf., a propósito, Armando Clápis, in Lei de registros públicos comentada, 2014, VV.AA., coord. de José Manoel de Arruda Alvim, Alexandre Laizo Clápis e Everaldo Augusto Cambler, p. 705).
Instituto tradicional, consiste o dote em um título aquisitivo de bens, aquisição que se relaciona a um matrimônio. Não se nega a relevância de considerar o dote sob a perspectiva econômica, o que é muito frequente na doutrina; assim, p.ex., já com esta lição de Pietro Bonfante: “A relação dotal (dos ou causa dotis) justifica a aquisição dos bens transmitidos pela mulher ao marido com o fim de sustentar os gravames do matrimônio (ad sustinenda onera matrimonii)” (Instituciones de derecho romano, s.d., p. 202), ou ainda com esta outra, de Alexandre Corrêa e Gaetano Sciascia: “O dote é um conjunto de bens que a mulher, ou outrem por ela, traz ao marido para este sustentar os ônus do matrimônio” (Manual de direito romano, 1953, vol. I, § 57).
Se, entretanto, “o uso exige desde tempos antigos que o paterfamilias da mulher faça doações ao marido, por ocasião do matrimônio, de valores patrimoniais como dos (dote)” (Max Kaser, Direito privado romano, 1999, p. 332), e sem negar, embora, o importante aspecto econômico do instituto, é preciso, para bem compreender a razão de o dote ser uma transmissão de bens da família da mulher para a família do marido, também considerar o dote por outros ângulos, o religioso, inclusive: “Il faut se pénétrer, pour en bien sentir l’importance, de l’union intime de la religion avec le droit civil des Romains“, assim já de há muito deixara dito Joseph Louis Ortolan (Histoire de la législation romaine, 1884, p. 598), empolgando a teoria das coisas sagradas (res sacræ) de cada família, com seu culto privado −o culto do lar−, reconhecendo “le lien religieux de la famille, et qui se transmet d’hérédité en hérédité” (id.).
Assim é que, tanto o observaram Jörs e Kunkel, se servia o dote, inicialmente, como compensação pela perda dos direitos sucessórios da mulher −que, com o matrimônio, apartava-se de sua família paterna−, só mais tarde foi que o dote passou a entender-se como aportação destinada a satisfazer os gastos do novo lar doméstico (onera matrimonii −in Derecho privado romano, 1965, p. 403). Outro aspecto a examinar, bem salientado por Álvaro D’Ors, está em que uma das finalidades do dote era o de ser prova das mais notórias quanto à honorabilidade da união (affectio maritalis −Derecho privado romano, 1997, p. 342); neste mesmo sentido, Jean Gaudemet, in Le mariage en Occident (2012, p. 63), observou que “la constitution d’un dot permet aussi de distinguer le mariage du concubinat” −e este sinal da legitimidade do matrimônio indica-se ainda constante ao menos até a segunda metade do século V d.C. Calha ainda referir que, em algum tempo, a constituição do dote satisfazia também um dever de piedade (cf. Fritz Schulz, Princípios do direito romano, 2020, p. 106, nota 665, numa cuidadosa tradução de Josué Modesto Passos).
Daí, diante dessa pluralidade de objetivos, até para avistar os motivos da pouca acolhida do dote entre nós, a conveniência de examinar, ainda que brevemente, a ideia da família romana e seu inafastável substrato religioso, um e outra que, vigorando ao largo da história de Roma, ampararam o instituto do dote. Sigamos aqui, brevitatis studio, as autorizadas referências de Fustel de Coulanges, em A cidade antiga (compulsado pela tradução de Fernando de Aguiar, edição de Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1971).
Fustel de Coulanges começa esse livro versando as crenças sobre a alma e a morte entre os gregos e romanos; entendiam eles ser a morte uma simples mudança de vida, não uma decomposição ou corrupção dos entes; ou seja, a morte, para eles, não consistia na separação da alma e do corpo. Não tinham, porém, a crença na metempsicose, nem na morada celeste −salvo quanto aos grandes homens e benfeitores da humanidade−, de maneira que, assim se extrai de seus ritos funerários, quando num túmulo se punha um corpo, acreditam em que, ao mesmo tempo, ali se colocava alguma coisa com vida. Nesses ritos, havia o costume de chamar–se três vezes a alma do morto e dizer–se que “a terra te seja leve”: sibi tibi terra levis, porque se se cria que o morto ia continuar vivendo debaixo da terra; daí sua inumação com coisas, alimentos, vinho, cavalos, escravos e até com mulheres (p.ex., a princesa troiana Polixena, filha de Príamo, foi enterrada com o corpo de Aquiles, a quem dera morte Páris, irmão de Polixena). A necessidade de sepultura vem indicada em Suetônio (referindo–se ao corpo de Calígula, do qual escreveu conhecida biografia), e bem se ilustra com o episódio em que heroicos generais atenienses, sem embargo de seu reconhecido valor militar, foram condenados à morte por não terem cuidado de recuperar os corpos de seus marinheiros para enterrá-los. Havia até uma pena de privação de sepultura, que vem referida por Sófocles (na Antígona) e na Ilíada, de Homero, quando Heitor, derrotado, pede a seu vencedor que este não o prive de sepultamento. Essas crenças tiveram forte influxo nas sociedades e nas instituições antigas.
No capítulo II do Livro I de A cidade antiga, Fustel de Coulanges cuida do culto aos mortos, salientando que as crenças religiosas deram origem a normas de conduta nas sociedades. Os mortos eram tidos como entes sagrados, sem distinção de pessoas. Eram chamados de “deuses subterrâneos”, seus túmulos designavam-se templos. Volta a afastar a crença então na metempsicose. Lembra que “se é preciso muito tempo para as crenças humanas evolucionarem, ainda muito mais tempo se torna necessário para as práticas exteriores e as leis se modificarem” (p. 22). Prossegue o autor: “as almas humanas divinizadas pela morte chamavam os gregos demônios ou heróis (ou penates). Os latinos apelidavam–nos de lares, manes ou gênios”.
No capítulo III do mesmo Livro I, Fustel de Coulanges versa sobre o fogo sagrado. Também chamado de lar. Mostra a origem da relevância do repasto, ato então religioso por excelência (p. 29). Refere a antiguidade do culto do fogo. Observa o que ocorre com esse culto quando os deuses se personificam (p. 32), surgindo, então, o altar (chamado de Vesta) e, depois, menciona uma lenda acerca da divindade, com forma feminina, designada também com o nome Vesta, que, deusa virgem, não representará o poder, nem a fecundidade, mas a ordem moral (p. 34; daí que o adjetivo vestal diga respeito aos atributos da sacerdotisa de Vesta, donzela virgem, donzela casta; em acepção irônica: pessoa que se tem na conta de muito honesta). Em seguida, o autor relaciona o culto do fogo sagrado com o culto dos mortos, e, no capítulo IV do Livro I, trate da religião doméstica, observando que cada família tem seu próprio deus, que é só protetor das pessoas integrantes dessa família. Salienta a importância dos ritos, as limitações (uma lei de Sólon proibia que um estranho acompanhasse, gemendo, um enterro do corpo de familiar alheio). Assim, cada família tinha seu próprio túmulo e o culto dos mortos era o mesmo que o culto dos próprios antepassados. Daí o papel assinado ao pai de família −intérprete e único pontífice de sua religião (p. 41)−, só se transmitindo essa religião doméstica na linha masculina, de sorte que a mulher apenas participava do culto mediante a intervenção do pai ou do marido. Disso resultarão graves consequências no direito privado e na constituição da família.
Com efeito, na abertura do Livro II de A cidade antiga,
Fustel de Coulanges dirá que a religião é o principal elemento constitutivo da família antiga: esta não se forma pelo nascimento, pelo sentimento ou pela força física, mas por seu caráter religioso, vale dizer, pela religião doméstica, pelo culto dos antepassados mortos. A família antiga, pois, é mais uma associação religiosa do que uma associação da natureza. Esse modelo de família, assim, é o que está religiosamente participando do culto dos antepassados: é por isso, tenha-se em conta este exemplo, que o emancipado deixa de pertencer a uma família, e, ao contrário, o adotado passa a pertencer a ela, porque aquele se desliga da religião do lar, ao passo em que o adotado ingressa nessa religião.
Ora, a primeira instituição estabelecida pela religião pagã dos romanos foi o casamento, ato solene pelo qual a mulher passava de uma família para outra, equivale a dizer: a mulher apostatava de uma religião doméstica e ingressava em uma outra, a do marido. A cerimônia, soleníssima, tanto na Grécia, quanto em Roma, integrava-se de três partes: desde a entrega (traditio) na casa da noiva, passando pelo cortejo até a casa do noivo (a noiva com vestido branco, com coroa, cantando-se um hino −o himeneu−, carregando-a o noivo ao colo para cruzar a soleira), até o repasto na casa do mesmo noivo (em que se alimentavam com um bolo). Era em razão desse caráter solene e religioso que o casamento antigo entre os gregos e romanos afastava a poligamia e tornava extremamente difícil o divórcio (exatamente à conta de ser um casamento religioso).
Desta maneira, ainda que o dote seja uma instituição jurídica, é antes e mais do que isso, “una institución social de profundo arraigo” (José Luis Lacruz Berdejo, Derecho de familia -El matrimonio y su economía, 2011, p. 327), e assim pode explicar-se o motivo de a constituição de um dote ser um dever de honra para os parentes da mulher, e só de modo tardio, no direito romano pós-classico, ter-se por obrigação juridicamente exigível (Jörs-Kunkel, p. 403).