(da série Registros sobre Registros, n. 278)
Des. Ricardo Dip
965. A circunstância de ter o vigente Código civil brasileiro de 2002 abdicado da disciplina legal específica do dote leva a que se dispute não apenas sobre a possibilidade subsistente de sua contratação, mas também, ao menos sob dado aspecto, acerca de suas características.
Já ficou dito ao largo destas exposições que nosso Código civil de 1916 teve o particular mérito de preservar, em sábia medida, boa parte dos costumes então já experienciados. A esse propósito, vêm de molde estas palavras daquele que foi o maior de nossos iusfilósofos, José Pedro Galvão de Sousa: “…é curioso notar como o direito civil brasileiro se conservou mais ligado ao direito histórico, isto é, ao velho direito português, fonte principal da obra produzida por Clóvis Beviláqua, cujo projeto encontrou, na Comissão Revisora, um ardoroso adepto da tradição em Andrade Figueira, que procurou reforçar a fidelidade ao direito histórico e se opôs decididamente às inovações radicais” (A historicidade do direito e a elaboração legislativa, citado aqui pela edição das obras reunidas Direito e política, 2020, vol. I, p. 136).
Com efeito, foi graças a essa virtuosa nota de historicidade que sobreviveu, frutuosamente, nosso Código civil anterior, afastando-se do fascínio do individualismo jurídico que, mercê da expansão do liberalismo, vitoriava-se em estendida parcela do mundo do século XIX. Deve-se isto a grandes civilistas brasileiros, disse José Pedro, mencionando os nomes de Beviláqua, Teixeira de Freitas, Lafayette e Lacerda de Almeida, aos quais “nunca faltou o senso da historicidade, quer na interpretação do direito vigente, quer na atuação pessoal renovadora que, em maior ou menor proporção lhe é dado exercer, traçando rumos doutrinários” (o.c., p. 136).
966. O Código de Beviláqua recolheu o instituto do dote, firmando-se numa concepção romana e na forma como o regime dotal, ainda que de pouquíssimo uso entre nós, naquilo que, entretanto, foi acolhido no Brasil, filiou-se a esse figurino, que se remete a seu conceito romano de parcela de bens que a mulher −ou terceiro, por ela− transfere ao marido, a fim de que do rendimento desses bens se favoreça a sustentação dos encargos do matrimônio, tudo sob a condição de que os bens (ou seu valor) devam restituir-se à mulher após a dissolução da sociedade conjugal.
De maneira específica, o Código civil de 1916 remeteu a instituição do dote a um contrato revestido de requisitos formais −escritura pública (inc. II do art. 256), precedência ao casamento, determinação e estimativa dos bens, declaração explícita de subordinação desses bens ao regime dotal: “É da essência do regime dotal descreverem-se e estimarem-se cada um de per si, na escritura antenupcial (art. 256), os bens, que constituem o dote, com expressa declaração de que a este regime ficam sujeitos” (art. 278).
Assim, os bens objeto de dotação “devem ser descritos no próprio contrato antenupcial, pois que eles têm de se submeter a um regime particular e ser restituídos em espécie, ou pelo valor declarado. Por esta última razão, devem esses bens ser estimados, o que importa dizer que o seu valor deve ser declarado de modo certo, deve ser fixado” (Clóvis Beviláqua, Código civil dos Estados Unidos Brasil, cit., vol. I, p. 631). Interessa aqui referir o que dispunha o art. 261 do Código anterior, qual seja que “As convenções antenupciais não terão efeito para com terceiros senão depois de transcritas, em livro especial, pelo oficial do registro de imóveis do domicílio dos cônjuges (…)”.
Acrescente-se, com a doutrina da Lafayette e seu abono nas lições de Carvalho Santos, que, se no contrato de dotação, intervier terceira pessoa, “o dote contém em si dois contratos: um entre a mulher e o dotador, outro entre a mulher e o marido”, embora sempre da mulher provenham, no regime dotal, os direitos do marido (Código civil brasileiro interpretado, 1977, vol. V, p. 116).
967. Pendem agora de exame duas questões: (i) se um contrato de dote, celebrado em tempo antecedente ao Código civil brasileiro de 2002, pode ainda ser registrado no ofício imobiliário; e (ii) se pode, por igual, contratar-se e registrar-se um ajuste de dote realizado após a vigência desse mesmo Código de 2002.
Quanto à primeira questão, parece respondê-la o disposto no art. 2.039 do Código civil em vigor: “O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido”. É que, como visto, o regime dotal era uma das regências matrimoniais de bens disciplinadas pelo Código de 1916.
Controversa, porém, aparenta ser a segunda questão. Regina Beatriz Tavares da Silva, não sem antes afirmar que o dote era, em nosso direito positivo, “uma verdadeira superfetação, já que não entrou absolutamente em nossos hábitos”, reportou-se a Clóvis Beviláqua, rememorando os elementos fundamentais do dote, a saber: (i) a incomunicabilidade dos bens dotais, (ii) sua administração pelo marido, e (iii) sua restituição à mulher (ou ao dotador, se terceiro), extinta que seja a sociedade conjugal (in Curso de direito civil, de Washington de Barros Monteiro, atualização, 2004, vol. 2, p. 228).
Parece provável que um negócio jurídico, tanto satisfaça essas características, não conflite com as disposições compulsórias do Código de 2002, em cujo art. 1.639: “É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver” (caput). Claro está, de toda a sorte, que o acordo antenupcial, ao estabelecer a dotação, não poderá ofender norma legal de caráter impositivo: “É nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei” (art. 1.655). Mantêm-se a exigências de escrituração pública (art. 1.653: “É nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento”) e de registro do título institutivo: “As convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges” (art. 1.657).
Não aparenta vedar-se a celebração (e o registro) de um contrato de dote −ainda que assim não se venha a nomear no pacto−, por exemplo, sob o modo de uma doação sub conditione resolutionis, de que é espécie a cláusula de reversão. O dote, com efeito, constitui uma propriedade resolúvel, de maneira que tem aplicação, a seu respeito, o que dispõe o art. 1.359 do Código civil de 2002: “Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha”.