Registro de permuta e de promessa de permuta (excurso sobre a «tokenização» imobiliária segunda parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 319) 

                        Des. Ricardo Dip

 

1.046.      Como ficou referido na explanação anterior, o termo «tokenização» imobiliária abrange mais de uma espécie. Uma, de caráter dinâmico, que corresponde ao quadro de uma negociação tendo por objeto um imóvel real, mas realizada num mercado paralelo, em contorno do sistema formalizado (que se refere algumas vezes com o adjetivo «centralizado») de alienações e onerações imobiliárias. A essa espécie aludiu-se ao exitus tabularum, ou seja, à evasão ou fuga dos processos próprios às notas e ao registro de imóveis.

Além disso, tem-se ainda, como espécie de «tokenização», a produção −ao modo como se efetua um artefato− de um imóvel existente apenas na via virtual, por mais que possa guardar algum espelhismo com prédios reais e até render frutos pecuniários. Bem por isto falou-se em duplicatio immobilis, uma duplicação imobiliária.

Assinale-se que também é possível a mescla dessas espécies, tal, por exemplo, pode dar-se mediante a metódica do Non-Fungible Token (NFT), que permite a aquisição de um imóvel no universo real e, concomitantemente, no universo virtual (metaverso). O NFT, diferentemente do que se dá com os bitcoins, é um ativo numérico não intercambiável −seu próprio nome o diz: infungível−, de sorte que tem forte garantia de autenticidade.

1.047. Acerca, especialmente, do primeiro desses modos de «tokenização» −porque o segundo, a duplicatio immobillis, parece acercar-se da ideia de um jogo, da ideia de um phantasma da imaginação, algo que, por isto mesmo, sendo fruto imaginário, não se pode conter sem mais (lembremo-nos do que ensinou S.Teresa de Ávila: a imaginação é la loca de la casa)−, reitere-se: é sobre a primeira dessas espécies, a saber, a do exitus ou fuga das notas e do registro que mais convém dirigir a atenção.

Os defensores do novo sistema −entre os quais, claro esteja, contam-se os terceiros que, intermediários, passam a atuar de maneira substitutiva dos notários e registradores− têm acenado, como já ficou dito em nossa explanação precedente, a algumas vantagens da «tokenização», vantagens essas que se situam num plano amplo de economia do processo. E isto, é verdade, não se pode recusar: uma vez que seja possível a transferência de imóveis (ou sua oneração) por meio da internet, com o preenchimento de um smart contract −isto é, um formulário estereotípico facilmente preenchível em seus claros−, é evidente o benefício de tempo, de esforços e de custos (estes, ao menos nos primeiros tempos, nos tempos de persuasão e captação de clientes).

De muito que, criticamente, já se escreveu, aqui no Brasil inclusive, sobre esse modo de exitus tabularum, cabem destacar-se (sem, com isto, recusar a relevância de outros) os estudos de Sergio Jacomino e Adriana J. Unger (NFT's −a tokenização imobiliária e o metaverso registral) e de Celso Maziteli Neto e Leonardo Brandelli (Blockchain e o registro de imóveis).

Comecemos por esse profundo estudo de Maziteli e Brandelli, com cujos fundamentos e conclusões podemos pôr-nos de acordo, ressalvados um pequeno ponto (mais terminológico do que conceitual) e uma distinção de aspecto.

O ponto a resguardar é o do uso de termos que, embora possam justificar-se sob algum ponto de vista, não traduzem com exatidão o que se passa no sistema registral brasileiro. Explico-me: tem sido comum que, sob influência de terminologia que possui seu significado em outros países (usus loquendi peregrinus) esteja-se a falar que o registro brasileiro de imóveis não é registro de títulos, mas sim registro de direitos. Tem isto algo de acerto, à maneira do linguajar de outros países, quando se queira afirmar −assim o fazem Maziteli e Brandeli− que nosso registro não é "um mero depósito do título no banco oficial de dados" e, além disto, que o registrador, no Brasil, é "parte ativa" no processo registral. Todavia, salvo hipóteses estreitas −p.ex., transmissão mortis causa, usucapião, avulsão, aluvião et reliqua−, o ofício imobiliário nacional não registra direitos, mas, isto, títulos em sentido material (v.g., a compra e venda, a doação, a permuta, a hipoteca, o usufruto, etc.), e é de seu registro que surge o direito real: o que era simples potência (titulus) movimenta-se e passa ao ato (actus que é o direito real, já como res effecta). Assim, deve prevalecer o usus loquendi nacional, evitando-se o risco de um juízo equivocado no plano teórico.

Além da fundada análise inicial da «tokenização», o principal que parece deva recolher-se das interessantes considerações de Maziteli e Brandelli é a crítica que destinam a seu acolhimento no Brasil. Põem eles em destaque que os defensores do novo sistema proclamam benefícios "de um maior acesso ao direito de propriedade imobiliária, até o fim da pobreza" (é quase inevitável dizer que esta promessa de "acabar com a pobreza" frequenta as utopias e as distopias sucessivas).

A crítica elaborada pelos autores é contundente. Recrutem-se algumas de suas observações, às quais é possível aderir, secundum quid:

"Parece haver um excessivo encanto pelas características tecnológicas da blockhain −importantes e úteis, diga-se− que conduz a uma sobrevalorização sua, jungido a um entendimento reduzido dos direitos de propriedade −sejam tais direitos os regulados por cada sistema jurídico soberano com suas vicissitudes, sejam os vários direitos de propriedade existente em mesmo ordenamento jurídico. 

O direito de propriedade imóvel é um conceito jurídico, que precisa ser juridicamente tratado e entendido, e, quando se o confronta com a nova tecnologia, percebe-se que pode haver aí uma evolução em alguns pontos específicos, mas não uma disrupção, porque ela em nada altera a situação jurídica e mesmo econômica, existentes. 

A tecnologia blockchain em nada altera o tratamento jurídico do direito de propriedade imobiliária −não porque não pretenda, mas porque não tem tal potencial – e, portanto, tem uma reduzida capacidade de contribuição no tema, trazendo na realidade, algumas melhoras, porém, algumas complicações (…). 

Dizer que o blockchain transformara o direito de propriedade imóvel é desconhecer o tratamento jurídico do próprio direito de propriedade −e ele é eminentemente jurídico, antes de mais nada. 

Os fundamentos alegados são francamente equivocados, e até pueris. 

Alega-se, por exemplo, que a tecnologia blockchain permitirá a «tokenização» do direito de propriedade, o que permitirá aumentar a liquidez dos imóveis, todavia esquece-se que (1) a tokenização não altera o direito real que lhe dá suporte, o qual, no caso da propriedade imobiliária, por ser física e juridicamente opaco, requer um tratamento especial para que esteja apto a ingressar no mercado (…)" (RDI 87, p. 75 e 76, litteratim).

Como ficou adiantado, é todo justificável aderir a essas críticas elaboradas por Celso Maziteli Neto e Leonardo Brandelli, mas isto (peço respeitosa licença para esta divergência) apenas desde uma dada perspectiva. É que os autores, por mais acaso não o quisessem, estão restritos neste seu estudo pelas fronteiras do ius positum, ou seja, do ordenamento jurídico vigente. Acontece que o clandestinismo imobiliário é exatamente uma via marginada, de algum modo, do direito posto: muito antes de um sistema como o da tokenização, já se avisava, e não só no Brasil, de que o excessivo dispêndio (em esforços, em tempo, em custos) com a instrumentação e o registro dos negócios imobiliários poderia inclinar alienantes e compradores a buscar uma alternativa, uma via de contorno. Dir-se-á, e com razão, que um «contrato de gaveta» não habilita às eficácias ofensiva e defensiva que se espera possam extrair-se de um sistema formal de segurança jurídica; é verdade, mas é também fato notório haver «contratos de gaveta». A questão resolve-se numa análise de riscos e na balança factual do cotejo entre o custo e o benefício. Desta maneira, não é possível, só à vista do ordenamento jurídico vigente, interditar que os particulares tendam a caminhos diversos, por mais que possam ser trilhas perigosas.

Para mais, e este é um ponto relevante a considerar, se houver interesse econômico bastante a justificar uma via alternativa ao sistema formal já estabelecido, nada impedirá que um legislador de turno possa admitir a pluralidade de caminhos de negociação e de registro imobiliários.

Em resumo, o valioso estudo de Maziteli e Brandelli, por mais que muito bem fundamentado, está restringido, na parte crítica, pelos marcos do direito brasileiro posto. Será necessária ainda, contudo, uma crítica complementar que não dependa desta limitação.

 

Prosseguiremos.