Registro de permuta e de promessa de permuta (excurso sobre a «tokenização» imobiliária - terceira parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 320) 

                        Des. Ricardo Dip

1.048.      Prosseguindo o breve exame que estamos a devotar  ao tema da «tokenização» imobiliária −ou, mais exatamente, das «tokenizações» imobiliárias, porque há delas mais de uma espécie−, e depois de, na explanação anterior, termos dedicado uma concisa apreciação do interessante estudo de Celso Maziteli Neto e Leonardo Brandelli (Blockchain e o registro de imóveis), tratemos agora de examinar, ainda que com a mesma brevidade que a ocasião sugere, o não menos interessante estudo de Sergio Jacomino e Adriana J. Unger (NFT's −a tokenização imobiliária e o metaverso registral).

A exemplo de Maziteli e Brandelli, também as considerações de Jacomino e Unger começam por uma relação dos conceitos e de alguns procedimentos envolvidos na "tokenização", cabendo neste passo destacar a referência que fazem à figura do gatekeeper, um substituinte dos notários e, muito especialmente, do registrador de imóveis. Põe-se aqui a indicação de que, embora haja, com a «tokenização», um processo marcadamente de natureza tecnológica, esse processo, dizem Jacomino e Unger, "é operado no mundo físico por pessoas ou instituições autorizadas", é dizer que não se propicia a expurgação da atividade pessoal (que, no plano correntio da realidade física e jurídica, é exercitada pelos tabeliães de notas e pelos oficiais do registro de imóveis), senão que esta atuação pessoal é imputada a extranei do sistema formal das notas e dos registros, terceiros −que os autores chamam de oráculos−, ordinariamente particulares, que buscam fins crematísticos. É sobremodo assinalável esta característica teleológica dos novos «oráculos» (adiante referidas por Jacomino e Unger como proptechs: startups que se valem dos recursos tecnológicos para uso no âmbito dos negócios imobiliários).

Na sequência −e não sem antes aludir à tendencialidade de o Sistema Registral Eletrônico Brasileiro (Srei) propiciar as inscrições na blockchain (assunto sobre o qual voltaremos)−, Jacomino e Unger não poupam letras ao designar a «tokenização» imobiliária como fenômeno paralegal −ou metaverso extrarregistral−, observando que as «tokenizações» de imóveis, "sem a intermediação dos gatekeepers e oráculos reconhecidos em lei [ou seja, os notários e os registradores de imóveis], abrem espaço para fraudes envolvendo o problema do duplo gasto físico-digital, como múltiplas tokenizações do mesmo imóvel em diferentes blockchains e negociação de ativos sem lastro". E prosseguem os autores: "A introdução de novos atores adiciona intermediários exógenos e altera a governança jurídica das transações imobiliárias, potencializando os riscos à segurança jurídica, incrementando custos transacionais". Mais adiante, confirma-se este entendimento: "a «propriedade digital» é expressão que atende a interesses de mercado (marketing) e não guarda correspondência com qualquer dispositivo da lei civil ou processual que regula a propriedade imobiliária, os direitos reais e sua defesa".

Em parágrafo dirigido a uma prognose, Jacomino e Unger dizem que, com a «tokenização» imobiliária, "o atual sistema de registro de direitos não seria substituído, mas soterrado abaixo de uma nova camada de transações «imobiliárias» líquidas, leves, rápidas e inseguras". E, em continuidade, destacam a estratégia (que se dirá mais de oratória do que real) de «modernizar» os sistemas.

Abram-se aqui dois parênteses para, por primeiro, anotar que os autores fazem referência a um "atual sistema de registro de direitos", com que usam a expressão «registro de direitos» na linha do que tem sido veiculado por uma tendência de americanização (ao menos terminológica) do direito, uma vez que o registro imobiliário brasileiro é tipicamente um registro de títulos, isto é, de causas materiais aquisitivas dependentes, em geral −vale dizer, salvas as exceções− de inscrição constitutiva dos direitos: para nós, ordinariamente, não há direito real sem tradição, quanto aos móveis, ou registro, quanto aos imóveis; não registramos direitos, mas títulos que se tornam direitos mediante o registro. Os mesmos Jacomino e Unger dirão o que segue: "A constituição, alteração, extinção dos direitos reais se dá pela inscrição no Registro de imóveis competente (art. 1.227 do CC). Mesmo nos casos em que a aquisição do direito real se dê extra tabula, nas estritas hipóteses legais, a plena disponibilidade do direito somente se alcança com o registro do título no ofício imobiliário competente". Bem se vê que afirmam ser apenas em "estritas hipóteses legais" que o ofício imobiliário registra direitos; rotineiramente, registra títulos: fatos, atos, negócios jurídicos.

Mas um outro ponto chama a atenção neste indicado excerto de Jacomino e Unger: trata-se aqui da referência à estratégia de «modernizar» −e note-se: os autores (e com adivinhável ótimo propósito) usam este vocábulo entre aspas.

A ideia de «modernizar» é um lugar comum dos discursos utópicos −e distópicos, da mihi veniam−; é frequente apostar-se no mistério do futuro para proporem-se novidadismos e o abandono puro e simples da tradição; ora, fundamentar mudanças com apoio num mysterium fortuitorum é tipicamente um fideísmo, e frequentemente um fideísmo revolucionário, apoiado em esperanças cegas nascidas não da apreciação racional da natureza das coisas −aqui incluída a história dos artefatos humanos, e as notas e os registros são artefatos, são constructos dos homens−, mas os acenos à modernização são muitas vezes esperanças apenas emergentes da imaginação, de uns desejos dispersos de melhora difusa, de progresso indefinido, de retorno ao paraíso perdido. Trata-se aí apenas de uma projeção antecipatória do que se sabe contingente.

Um tanto impiedosamente, é verdade, nas interessantes páginas dos Escolios a un texto implícito, disse Nicolás Gómez Dávila que o futuro do verbo é o tempo predileto do imbecil. Mas talvez ainda menos sensatos sejamos os que cremos nestes acenos a um misterioso futuro que se propõe desconstrutivo ou, no mínimo, descompassado das res naturæ ou da natura rerum.  Está mais do que na hora, efetivamente, de pôr cobro a esta mania funesta de crer no recurso falacioso ao tópico «é preciso modernizar», quando esse tópico pouco ou nada esconde de seu gosto pela revolução, pela abdicação da realidade, pelo abandono da natureza mesma das coisas, das notas e dos registros públicos inclusive. Encerremos o parêntese com esta valiosa passagem de Thomas Merton: "No mundo moderno não falta quem estique a cabeça, aprume os ombros e esteja sempre marchando para o futuro, muito embora sem a mínima noção do que seja ou possa significar o «futuro»" (in A montanha dos sete patamares).

Destaque-se que pareceria dirigirem Jacomino e Unger sua crítica à «tokenização» imobiliária sem, prima facie, ressentir-se do tipo de problema que aflige o núcleo da impugnação desfiada por Maziteli e Brandelli, pois que estes últimos se fronteirizaram expressamente pelo ius positum, desfiando críticas afeiçoadas ao âmbito do atual ordenamento jurídico brasileiro. Embora, meo iudicio e digo-o com todo o respeito pelos autores, as indicações de Jacomino e Unger recaiam também, no fim e ao cabo, nos equívocos positivistas, é preciso reconhecer que, ao menos, fazem um aceno à natureza das atividades notariais e registrais como algo antecedente (pois, motivador) da normativa constitucional.

Assim, partindo de uma referência à Constituição federal brasileira −deste modo, pois, de um marco da normativa posta−, Jacomino e Unger superam esta restrição dogmática inicial e lançam-se a um fundamento precedente à positividade legística: "A quem a Constituição Federal −perguntam-se retoricamente− delegou a função de promover a tutela pública de certos interesses privados que a própria lei cuidou de arrolar? Por qual razão se revestiu a constituição da propriedade e de direitos reais imobiliários de processos formais e solenes?". E prosseguem: "por qual razão o constituinte de 1988 cravou que a atividade notarial e registral deve revestir-se, por sua importância econômica e social, de estatalidade, delegando a profissionais do direito o mister de promover os atos de aquisição e disposição de tais direitos?". E continuam, uma vez mais acudindo a um elemento de positividade, qual seja, a da jurisprudência forense (mas que lhes serve de argumento de autoridade), para referir que a atividade notarial e registral "em decorrência de sua própria natureza" é função "revestida de estatalidade", e disto concluem não ser possível uma entidade privada, "à míngua de qualquer disposição legal, arvorar-se em entidade registradora, promovendo e sacramentando intercâmbios econômicos com o fim de constituir direitos reais sobre uma «propriedade digital» decalcada de um ativo físico tangível −como é o bem imóvel".

Por mais acerto haja nestas bem indicadas conclusões, seus fundamentos parecem padecer de dois problemas: o primeiro, mais visível, está na intercalada "à míngua de qualquer disposição legal". Haveria nisto uma possível ressalva em prol de sobrevinda normativa que alterasse o ordenamento? Ou seja, toda a anterior referência à natureza das atividades notariais e registrais seria apenas a admissão de uma natureza ditada pelo ius positum de turno? Vale dizer, uma natureza «historicista» e não histórica?

Mais preocupante, parece-me, é a reiterada afirmação da «estatalidade» do notariado e dos registros públicos. Os autores terminam, deste modo, pela redução do ser público ao ser estatal, como se o estado fosse o único ente suscetível da natureza pública. Trata-se de uma posição de consequentes graves, por mais que adotada e repetida por vozes respeitáveis da jurisprudência doutrinária e da pretoriana.  Não é demasiado contentar-nos neste passo com as observações de García Sánchez, eminente notário espanhol, para quem a "partida de nacimiento [do notariado] no fue librada por el poder constituido sino por la propia sociedade civil que lo reclamaba".

Ao abdicar do reconhecimento de que a natureza do notariado latino, a despeito de seus matizes, é o de uma função da comunidade, ladeando, pois, a história que configurou a natureza das notas e dos registros públicos, o que há de correto nas conclusões de Jacomino e Unger esbarra na persistente potestade −que, pois, acaba por ser legitimada pelos autores− de o estado alterar como queira e bem entenda o sistema formal de publicidade imobiliária.

Então, efetivamente, embora devam admitir-se as conclusões críticas de Maziteli, Brandelli, Jacomino e Unger, não parecem elas, contudo, alicerçadas em fundamentos adequados e bastantes, porque, em verdade, refogem da legitimidade que, de maneira necessária e suficiente, haveriam de buscar-se na natureza das notas e dos registros públicos, segundo sua constituição histórica, e não em sua expressão legislativa de turno.