Registro de permuta e de promessa de permuta (excurso sobre a «tokenização» imobiliária primeira parte)

                (da série Registros sobre Registros, n. 318)

                        Des. Ricardo Dip

 

1.042. Trataremos agora do que se tem designado «tokenização imobiliária», tema que se inclui aqui, ao modo de um apêndice do capítulo sobre o registro da permuta e da promessa de permuta, porque se editou pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul um provimento −de n. 38/2021 (de 1º-11)− em que a tokenização é estimada como um negócio de permuta.

Cabe aqui, abstraídas tanto a questão da competência constitucional de o judiciário brasileiro editar regras para os registros públicos (uma vez que, na referência de Gustavo Zagrebelski −legislatività dell'organizzazione−, tem-se aí um caso em que vão muito além dos correcionados os destinatários desta regulação), quanto eventuais controvérsias acerca do conteúdo e da aplicação desse Provimento 38/2021 da Corregedoria Geral da Justiça gaúcha, destacar o quanto de louvável há na intenção de (assim me parece) integrar a «tokenização» de imóveis no sistema do registro e de preservar a transmissão e a oneração da propriedade predial dentro privativamente do mesmo sistema formalizado.

Todavia, bem é que considere, à partida, uma dúplice (a bem dizer, ao menos, dúplice) perspectiva ao apreciar-se essa «tokenização" imobiliária: uma, a da produção paralela de um imóvel virtual correspondente ao real (duplicatio immobilis); outra, a da negociação com um imóvel real num mercado paralelo (exitus tabularum). Ali, o que se pretende é produzir, ao modo de um artefato virtual, uma cópia da realidade imobiliária, projetando-se rendimentos nessa mesma realidade (p.ex., uma duplicação para o fim de, com a aquisição de cotas, haja o estabelecimento de uma composse do imóvel, dando-se este em locação, de sorte que os alugueres se dividam, realmente, entre os colocadores). Na segunda espécie de «tokenização», o que se tem é uma evasão do sistema formal do registro imobiliário −o que inclui a atividade notarial−, estabelecendo-se um mercado de contratação e inscrição em paralelo ao oficial.  

1.043. O referido Provimento 38/2021 da Corregedoria da Justiça do Rio de Grande do Sul foi editado pela Des. Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak e contém quatro artigos, dos quais os dois primeiros são os diretamente próprios à atividade notarial e registral. 

Lê-se no art. 1º do Provimento que os tabeliães de notas, para lavrarem escrituras públicas relativas a troca de imóveis que tenham como contrapartida «tokens/criptoativos»,  devem observar, de maneira cumulativa, estas condições: "I - declaração das partes de que reconhecem o conteúdo econômico dos tokens/criptoativos objeto da permuta, especificando no título o seu valor; II - declaração das partes de que o conteúdo dos tokens/criptoativos envolvidos na permuta não representa direitos sobre o próprio imóvel permutado, seja no momento da permuta ou logo após, como conclusão do negócio jurídico representado no ato; III - que o valor declarado para os tokens/criptoativos guarde razoável equivalência econômica em relação à avaliação do imóvel permutado; IV - que os tokens/criptoativos envolvidos na permuta não tenham denominação ou endereço (link) de registro em blockchain que deem a entender que seu conteúdo se refira aos direitos de propriedade sobre o imóvel permutado".

Trata o art. 2º desse Provimento da qualificação do título notarial dessa permuta pelo registrador imobiliário, determinando controle ele a satisfação das condições elencadas no referido art. 1º, competindo-lhe ainda transcrever "expressamente no ato as cláusulas relativas aos incisos I e II".

O art. 3º do mesmo Provimento dirige-se a evadir, no quadro dessa negociação de permuta e de seu registro, a prática de ocultamento ou dissimulação da origem ilícita de bens, imperando que os atos correspondentes (notarial e registral) sejam ambos "comunicados ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, na forma do Provimento nº 88/2019 do Conselho Nacional de Justiça".

Por fim, o art. 4º do Provimento anuncia-lhe a vigência a partir do dia útil seguinte a sua publicação no Diário da Justiça Eletrônico. 

1.044. As palavras «token» e «tokenização» não aparecem listadas nos vocabulários oficiais editados quer pela Academia Brasileira de Letras, quer pala Academia das Ciências de Lisboa. Tampouco ali aparecem os vocábulos aportuguesados «toquem» e «toquenização», que, provavelmente, venham logo tornar-se de uso mais frequente, certo que, ainda com alguma timidez, já surgem aqui e ali nas redes sociais.

«Token» é palavra de uso antigo na língua inglesa. Tem as acepções de sinal, marca, lembrança, prognóstico, etc., e também significa moeda antiga.

O Dictionary Longmans of Contemporary English registra dois principais sentidos para essa palavra: primeiro, a round piece of metal that you use instead of money in some machines (ou seja, uma peça redonda metálica que se usa em vez de dinheiro em algumas máquinas), e um segundo sentido, com aspecto formal: something that represents a feeling, fact, event etc. (algo que representa um sentimento, um fato, um evento, etc.). Tem-se ainda notícia do uso do termo «token» no campo da da psicologia ou da psiquiatria para referir-se a um método de incentivo (token economy) de condutas com oferta de recompensas (p.ex., de dinheiro simbólico −token money) para obterem-se, em ambiente hospitalar ou prisional, comida especial (special food), acesso à televisão e outras vantagens; assim, lê-se no Collins English Dictionary: "a type of psychotherapy in which the inmates of an institution are rewarded for good behaviour with tokens that can be exchanged for privileges" (ou seja, um tipo de psicoterapia em que os presos de uma instituição são recompensados por seu comportamento com tokens que podem trocar-se por privilégios).

Especificamente, para o âmbito do direito, «token» é um sinal ou marca (a sign or mark), que é prova ou evidência (material evidence) da existência de um fato: "a document or sign of the existence of a fact" ou, noutro sentido, token é o nome dado a " pieces of metal, made in the shape of money, passing among private persons by consent at a certain value". (Free dictionary by Farlex) −peças de metal, produzidas em forma de dinheiro, circulando entre particulares que consentem em que essas peças possuam um determinado valor.

De maneira ainda mais especializada, chama-se crypto token a representação de um ativo (a representation of an asset) ou interesse que acede com caráter original único à blockchain de uma determinada criptomoeda; ou seja, uma representação digital, insuscetível de replicar-se (um token não pode nunca multiplicar-se, copiar-se), emitida em uma rede (chamemo-la assim: rede) de blockchain, em cujo ambiente é negociável. Esses crypto tokens assemelham-se muito às criptomoedas (ou cibermoedas), mas, enquanto estas são usadas como meio de entesouramento (poupança, armazenamento), ou de troca, ou de pagamento, já os crypto tokens são dirigidos, rotineiramente, ao levantamento de recursos para a realização de projetos.

Observe-se que esse ativo digital se relaciona sempre com algum bem, quer dizer, com algum valor, e embora sempre se indique sua correlação com uma criptomoeda, não se exige que o token seja diretamente referível a um valor financeiro, tal, por exemplo, quando esse ativo seja um direito de propriedade que só de maneira indireta se relacione a um número pecuniário.

Assim, em resumo, um crypto token é um ativo digital único que é custodiado na rede blockchain e pode tanto dizer direto respeito a um valor pecuniário, quanto a outros bens, incluído o direito de propriedade. 

1.045. Consideremos agora, de modo breve, em que consiste a chamada tokenização de imóveis −ou, melhor é dizer, essas denominadas tokenizações, assim, no plural, para atender à diversidade de suas formas. 

Por primeiro, tratemos da perspectiva de seu uso como representação imobiliária no mercado descentralizado (exitus tabularum). Tem-se aí a formação de um ativo digital único −irreproduzível− que, relativo a imóveis, ingressa na rede blockchain, e seu objeto é nela custodiado; nessa rede é que se negocia, sem, ordinariamente, ingressar no sistema tradicional protetivo −que é um sistema formal centralizado. A blockchain, por sua mesma definição, avessa-se de um regime central de segurança jurídica.

Sendo assim, e de novo: nesse aspecto de saída (exitus) do sistema formal, a tokenização imobiliária é um meio de converter um ativo tradicional (p.ex., o direito de propriedade) em um token (crypto token) ou, mais exatamente, em vários tokens digitais, cada um deles, irrepetíveis, representando uma parte do ativo, isto é, uma parte do imóvel.

Quais vantagens se esperam (ou dizem alguns esperarem-se) desse sistema descentralizado? 

Em primeiro lugar, como o direito de propriedade do imóvel pode ser fracionado de maneira bastante lata (o que, aliás, não constitui novidade, poderia esta divisão também fazer-se mediante cotas ideais registráveis objeto de condomínio), pensa-se que a maior facilidade de negociação digital levaria a mais rápida liquidez do ativo, supondo-se a atração de pequenos investidores para adquirirem parcelas pequenas do domínio, sem o dispêndio correspondente às aquisições no mercado formal.

Com efeito, na rede blockchain, podem utilizar-se os chamados «contratos inteligentes» −smart contracts (mas o smart inglês também pode ter sua acepção despectiva)−,   maneira contratual que implica (pode pensar-se, ao menos de modo transitório) economia de tempo, de custos e de esforços. De fato, os negócios com os tokens ocorrem no ambiente de um mercado secundário, paralelo, sem a necessidade da intervenção de (alguns) terceiros: aqui, sobretudo, pense-se em notários e registradores, porque haverá outros terceiros, os intermediadores. 

Não negligenciável é a dificuldade que haverá na incidência de tributos, bem como, nas sucessivas transações dos tokens −veja-se aqui o ordenamento brasileiro−, a marginação do respeito legal à preferência dos condôminos. 

Por fim, porque todos os investidores podem conhecer a toda hora a estruturação do ativo, e o que pode a muitos parecer melhor: sem que terceiros possam, sem mais, conhecê-lo.

Prosseguiremos.