Registro de usucapião (décima-oitava parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 296)

Des. Ricardo Dip

1.011. De duas maneiras pode haver rejeição do pedido extrajudicial de usucapião: a primeira possui caráter meramente formal; a segunda tem natureza substantiva, material. 

No tocante com a rejeição por problemas de forma –em paralelo com o que corresponde, na via judicial, aos temas dos pressupostos processuais e das condições da ação–, o registrador pode (ou melhor: deve até) atuar propter officium

Essa modalidade de rejeição molda-se à categoria processual das sentenças terminativas ou extintivas, que se prolatam, na via jurisdicional, sem resolução de mérito. Cabe a rejeição do pedido extrajudicial de usucapião sempre que houver deficiência documentária (p.ex., falta de intervenção de advogado ou de juntada de instrumento que o habilite a representar o solicitante; ausência de ata notarial, de planta, memorial descritivo, certidões, etc.) ou déficit fundacional (v.g., não indicação do fundamento da usucapião ou a referência expressa a título indicativo de a posse do imóvel não ser ad usucapionem: assim, ad exempla, a posse exercitada na condição de locatário ou de comodatário, a posse afirmadamente clandestina ou violenta).

  Antes, porém, de proferir o juízo registral de rejeição, deve o registrador verificar se é hipótese de, previamente, conceder oportunidade para a emenda do pedido. Cabe observar que, quer à conta da subsidiariedade a que se remete o art. 15 do vigente Código brasileiro de processo civil (“Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”), quer em vista de uma compreensão ex generali sensu do disposto no § 8º do art. 216-A da Lei 6.015/1973: “Ao final das diligências, se a documentação não estiver em ordem, o oficial de registro de imóveis rejeitará o pedido”, sempre deve ensejar ao solicitante da usucapião a emenda do pedido inicial. 

A propósito, há na regulativa de regência previsão expressa de serem juridicamente viáveis diligências, é dizer, medidas para propiciar o conhecimento de mérito ou para confirmar a pretensão prescricional de fundo: “Para a elucidação de qualquer ponto de dúvida, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis” (§ 5º do art. 216-A).  Nesta mesma direção, lê-se no caput do art. 321 do Código de processo civil: “O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320 ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado”, e só depois é que, sendo a hipótese, caberá a rejeição do pleito: “Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição inicial” (par.ún. do art. 321).

Por outro lado, o exame de mérito do pedido –que poderá concluir em seu acolhimento ou em sua rejeição– é sucessivo de eventuais diligências (vidē § 6º do art. 216-A da Lei 6.015), e convoca, na esfera administrativa, o processo de dúvida registral (cf. arts. 216-A, § 9º, e 198 et sqq. da Lei 6.015), não se inibindo, contudo, o recurso à via jurisdicional (p.ex., mandado de segurança, ação de obrigação de fazer; cf. o art. 203 da mesma Lei 6.015: “A decisão da dúvida tem natureza administrativa e não impede o uso do processo contencioso competente”).   

1.012. Dispõe-se na lei devam, do pedido de usucapião na via extrajudicial, notificar-se os titulares de “direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel” objeto material da pretensão ou “dos imóveis confinantes”, salvo se tiverem lançado sua assinatura na planta que, exigivelmente (inc. II do art. 216-A da Lei 6.015), há de instruir o pedido.  Assim, faltante o consentimento representado pela assinatura da planta –ou em documento autônomo que se reporte a esta planta–, deve notificar-se todo aquele que seja titular de legitimação tabular referente ao próprio imóvel usucapiendo ou a prédios confrontantes, quer a inscrição conste de matrícula (a que se reporta expressamente a lei), quer conste de transcrição –livro 3 do Decreto brasileiro 4.857/1939– ou mesmo de seus livros 2 e 4, nestes últimos  para, deste modo, assegurar o direito de defesa de credores hipotecários e promitentes compradores.

O termo notificação –a lei refere-se a que “o titular será notificado”– é indicativo, na regra em exame, de que se dá aviso de algo (ou seja, dá-se a conhecer alguma coisa), com o fim explícito de os notificados manifestarem consentimento expresso com o pedido de usucapião, mas também para ensejar-lhes a oportunidade de uso de medidas em defesa de seus interesses. Clóvis Beviláqua, em nota ao art. 960 do Código civil de 1916, abonava o conceito de notificação enunciado por João Mendes: “cientificação de um preceito para a prática ou não prática de um ato”. 

Previa-se, a propósito, no texto originário do art. 216-A da Lei 6.015/1973, que, impugnada a pretensão, devesse o oficial de registro de imóveis, sem mais, “remeter os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel” (§ 10 do art. 216-A). A Lei 14.382/2021 alterou-lhe a redação, passando a admitir algum controle da impugnação pelo próprio registrador imobiliário: “Em caso de impugnação justificada do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum, porém, em caso de impugnação injustificada, esta não será admitida pelo registrador, cabendo ao interessado o manejo da suscitação de dúvida nos moldes do art. 198 desta Lei”.

A prudente previsão de que o registrador possa apreciar e decidir acerca da impugnação dirigida contra o pleito de usucapião −remediando, pois, as impugnações destituídas notoriamente de justificação−, já, por outra parte, não se compreende o novidadismo que abdicou da tradicional instituição da dúvida do registro, ao permitir-se que ela se suscite contra juízo de qualificação positiva e por terceiro, quando, em seu figurino habitual, ao processo dessa dúvida apenas se legitimava o apresentante do título e na hipótese de juízo de qualificação negativa. 

Sequer se avista benefício algum com essa novidade, porque, diante do permanente caráter não jurisdicional do processo da usucapião perante o registro de imóveis, sempre, a final, poderá instaurar-se demanda contenciosa.

Melhor pareceria, portanto, que se admitisse a apreciação e decisão do registrador acerca das impugnações, sem prever uma forma intercorrente de seu controle na via administrativo-judicial, caminho que, propício para dispêndio maior de tempo, de esforços e de custos financeiros, só pode compreender-se no ambiente de uma ansiedade de mudanças. Nec plus ultra