Registro de usucapião (décima-sétima parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 295)

Des. Ricardo Dip

1.009. Continuemos nossa incursão pelo disposto no art. 216-A da Lei 6.015, agora versando dois temas: (i) o da eficácia prenotante −a funzione prenotativa a que se refere a doutrina italiana− e (ii) o da motivação do juízo qualificador no processo extrajudicial de usucapião.

O primeiro desses temas reveste-se de vistosa relevância, à luz do que prescreve o § 1º do mesmo art. 216-A: “O pedido será autuado pelo registrador, prorrogando-se o prazo da prenotação até o acolhimento ou a rejeição do pedido”. O problema que logo poderia aventar-se é o da perseverança dessa prenotação por largo prazo, em possível detrimento da disponibilidade do imóvel pelo proprietário tabular (ou, em quadro símile, a disponibilidade relativa de titulares de direitos reais menores).

Sempre, no entanto, que uma inscrição no protocolo possua mera função prenotante, a publicidade-notícia que emerge da prenotação tem eficácia suficiente para, sem impedir a inscrição de títulos protocolizados de maneira sucessiva (e cujo objeto, por evidente, seja o mesmo bem imóvel do título anterior), determinar a inoponibilidade dos registros posteriores conflitantes com o do título beneficiado pela prenotação antecedente.

O inciso I do art. 167 da Lei n. 6.015, ao prever o registro da citação nas ações imobiliárias reais ou pessoais, reipersecutórias, dá-nos boa ilustração para examinar a eficácia prenotante, porque, procedentes venham a ser essas ações, os registros posteriores ao da citação correspondente são ineficazes, se esses registros forem prejudiciais ao demandante.

Por igual, isto deve considerar-se quanto processo extrajudicial de usucapião.

A eficácia prenotante define-se o efeito substantivo único de determinada prenotação: vale dizer, o da publicidade-notícia. Se, pois, a prenotação, num dado caso, tem por escopo somente dar notícia de um fato, ato ou negócio jurídico, para acautelar o interesse do solicitante, ela já opera plenamente seus efeitos com o só lançamento no protocolo. 

Nesta ordem de coisas, nenhum é o motivo para extrair do protocolo o impedimento dos registros posteriores, impedimento que sequer resultaria da correspondente inscrição na matrícula (p.ex., o registro de uma citação em demanda reipersecutória não acarreta, ipso facto, na interdição de registros posteriores; por que, então, a só indicação de uma publicidade-notícia no livro do protocolo produziria um efeito que o registro definitivo, na matrícula, não estaria habilitado a produzir?). 

Escreveu-se em outro lugar: “os efeitos da inscrição no protocolo não podem estimar-se com inteira abstração dos demais livros registrários. O princípio consagrado no aforismo prior in tempore, potior in iure não é apanágio do livro do protocolo; se há alguém que possua uma consolidada prioridade no tempo e, deste modo, um melhor status jurídico é exatamente o legitimado registral. Não parece razoável, de conseguinte, que o titular inscrito seja obstado no exercício do atributo da disponibilidade só à conta de que haja −fora da linha formalmente regular da continuidade− um pretendente a obter declaração de direito imobiliário constituído à margem do sistema formalizado de aquisição e oneração prediais”, rematando-se: “A usucapião é a derradeira fórmula evasiva da probatio diabolica, e não um meio aquisitivo ordinariamente concursal do sistema formalizado de aquisição e oneração prediais.”  

A clausura registral ante o só protocolo do pedido de usucapião levaria ao risco evidente de fraudes e do que se designou de vindicta contra tabulam –vingança contra o registro (a bem dizer, contra o titular de um registro).

1.010. A acolhida do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião –a que se refere o § 1º do art. 216-A da Lei n. 6.015/1973– tem por efeitos formais, proximamente, a decisão do processo de usucapião, e, de maneira remota, o registro dessa usucapião, com caráter declarativo. Duas questões atraem logo a atenção a propósito desse acolhimento do pedido pelo registrador: (i) deve textualizar-se e ser fundamentado?; (ii) é suscetível de recurso? (isto será matéria da explanação seguinte).

Embora não o explicite a normativa de regência, a decisão de acolhimento do pedido de usucapião deve ser escrita e conter fundamentação. A textualização do acolhimento é necessária porque o processo extrajudicial de usucapião é documentário, é um processo escrito, assim como o é seu equivalente na via judicial. E se o processo de usucapião no judiciário termina, em sua etapa de conhecimento, por uma sentença, também no âmbito extrajudicial é isto o que ocorre, ainda que neste último não seja usual falar-se em “sentença” do registrador (há, porém, quem a profira com espelho na rotina judicial, até mesmo com o célebre início “vistos, etc.”). 

Essa decisão escrita do registrador não é um desfecho ritual do processo –ou seja, uma escrita que apenas põe termo ao processo–, mas, isto sim, é um título (ou, ao menos, o documento culminante desse título) para o registro. Desta maneira, o ato mesmo do correspondente registro da usucapião é como que uma fase de cumprimento da decisão de conhecimento (uma espécie analógica de execução).

Essa decisão deve ser fundamentada, para, de logo, permitir-se o controle administrativo e judicial de sua razoabilidade e sua apreciação em eventual recurso ou em demanda de caráter jurisdicional.  

Três são os supostos exigíveis da fundamentação da “sentença” registral: (i) a declaração de seu autor (o registrador ou seu substituto legal), (ii) a explicitação do quanto verificado, em concreto (ou seja, singularmente, no caso), acerca dos requisitos da pretensão e (iii) a motivação lógica (é dizer, ordenada) da escolha pelo acolhimento do pedido de usucapião. 

Embora não se exijam largas escritas –hoje elas viraram moda no mundo jurídico, em prejuízo da recomendável sobriedade e concisão da linguagem (“Perder-se em palavreado, disse Elias Canetti, no Auto de fé, é o pior perigo que pode ameaçar um sábio”; com alguma impiedade, Nicolás Gómez Dávila chegou mesmo a dizer que “a prolixidade não é o excesso de palavras, mas a escassez de ideias”)–, repita-se: a despeito de não se reclamarem escritas longas, a textualização fundamentada da decisão registrária há de ser explícita e pontual, não bastando que ela seja o resultado implícito da intervenção do registrador ou de uma singela referência abstrata aos supostos legais.