Registro de usucapião (décima parte)

 

(da série Registros sobre Registros, n. 288)

Des. Ricardo Dip

990. Façamos aqui um pequeno excurso, para tratar da um pouco acerca da categoria registral da averbação, pois que o inciso II do art. 216-A da Lei 6.015 se refere aos “direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes”.

  Ainda que seja quase pacífica a admissão do caráter exemplificativo da lista dos fatos e atos suscetíveis de averbação no direito brasileiro vigente, não se pode ignorar, entretanto, que há toda uma doutrina sugestiva de critérios para o exercício da prudência legislativa referente às averbações no registro de imóveis. Elas cabem, sobretudo, nas esferas (i) da extinção da propriedade (abandono, renúncia, perdimento do objeto material), (ii) da transferência de direitos reais menores ou ainda de ônus que a eles se equiparem (cessão de hipoteca, cessão de compromisso de compra e venda), (iii) da extinção de direitos reais menores ou de ônus a eles equivalentes, e (iv) da retificação dos assentos (construção, demolição, alteração de medidas de contorno ou de superfície, correção de erros de escrita, mudança no estado civil dos legitimados registrais, mudança de confrontantes, prorrogação de hipoteca), incluída a retificação somente negativa (cancelamentos de inscrições).

Não compete ao registrador apreciar, ao menos no momento inaugural, o interesse efetivo de legitimados registrais que, segundo o texto da lei de regência, devam manifestação seu consentimento com o pedido de usucapião. O processo extrajudicial de usucapião transita no âmbito da concórdia preventiva, e tal o fez antiga lição de Paul Roubier, a ratio essendi de um direito formal de precaução é o de, pela só e estrita observância das formas, preexcluir conflitos. Daí a necessidade de o registrador aferir o consentimento de todos os  titulares de “direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes” (inc. II do art. 216-A da Lei 6.015), sem se lançar a um prematuro exame da efetividade do interesse de cada um desses titulares.

991. Indica a lei, neste mesmo dispositivo do inciso II do art. 216-A, direitos registrados na matrícula, etc. A matrícula no registro imobiliário é a folha que tem por foco de convergência uma determinada coisa imóvel −daí que esta folha possa denominar-se também folha ou fólio real. Mas pode dar-se que o ponto de atração seja não uma coisa, senão que uma determinada pessoa, e, neste caso, tratar-se-á de uma folha ou fólio pessoal (embora não se designe matrícula, o livro 5 do registro de imóveis brasileiro, sendo, como é, um indicador pessoal, pode chamar-se fólio pessoal).

Na Lei brasileira 6.015, a matrícula é um fólio real, ou seja, uma folha a que corresponde um só imóvel, imóvel a que, por sua vez, corresponderá uma só folha, o que representa a adoção do princípio da unitariedade da matrícula (diz a mesma Lei, que “cada imóvel terá matrícula própria” −inc. I do § 1º do art. 176). A matrícula, enquanto fólio real, é como que a biografia do imóvel que é seu objeto: conta-lhe um tanto da vida física (ou seja, descreve o imóvel em seus acidentes de quantidade, qualidade e lugar circunscritivo −cf. n. 3 do inc. II do art. 176 da Lei 6.015) e muito de sua vida jurídica, indicando as sucessivas relações de direito por que passa esse imóvel. Constitui, assim, uma espécie de retrato de corpo e alma de um imóvel, que, entre nós, veio a substituir, desde 1º de janeiro de 1976, a simples técnica de transcrição do título.

Na matrícula, além do inventário inicial −em que se apontam as características corporais do imóvel, bem como referências determinativas e especiais de seu proprietário (n. 4 do inciso II do art. 176 da Lei 6.015)−, somente podem assentar-se dois tipos de inscrição: o registro e a averbação (caput do art. 176), espécies cujo conteúdo são os títulos arrolados no art. 167 da mesma Lei 6.015, desde que não se tenham atribuído expressamente ao livro 3 -registro auxiliar.

As normas relativas ao processo extrajudicial de usucapião prevêem que a planta e o memorial descritivo −documentos indispensáveis para a inauguração do feito− devam assinar-se pelos pelos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo, mas, a despeito da menção expressa à matrícula, não por isto deve compreender-se proibida a via extrajudicial para a usucapião de “imóvel transcrito”, ou seja, de imóvel cuja situação registrária seja a constante de uma transcrição −que era o modo como se inscrevia o domínio antes da vigência da Lei 6.015.

Não se vê motivo, com efeito, para vedar o processo extrajudicial de usucapião de imóvel objeto de transcrição, além de que a referência exclusiva à matrícula possa explicar-se pela expectativa −desmentida pelos fatos, é bem verdade− de que, passados quase 50 anos desde o vigor inicial da Lei 6.015, seria de todo razoável supor que a técnica do fólio real já se houvesse implantado plenamente no Brasil. Todavia, ainda persevera o hibridismo transcrição-matrícula. 

Em acréscimo, pode haver −com a técnica registral anterior à Lei 6.015− situações de titularidade objeto de assentos em outros livros (p.ex., nos livros 4 e 8, de registros diversos e de registro especial, previstos no Decreto 4.857, de 9-11-1939; ou até no antigo livro 2 −de inscrição hipotecária− deste mesmo Regulamento de 1939, embora seja menos provável nele sobreviver, ainda agora, algum direito). 

Recapitulemos um tanto: designa-se matrícula, no direito registral, ou mais raramente matriz, a folha ou fólio real correspondente à biografia do imóvel que nela se inscreve; cuida-se, pois, do lugar narrativo da história da vida do imóvel, sobremodo de sua vida jurídica, mas não menos, sob certo aspecto, de sua vida física, porque o imóvel, descrito no inventário da matrícula, pode, ele também, padecer alterações em sua realidade natural (para que se tenha um exemplo gráfico, pense-se na avulsão e na aluvião).  

Na praxis do registro de imóveis brasileiro, inaugura-se a matrícula (na expressão de Raúl García Coni trata-se aí do début registral): (i) obrigatoriamente, quando, havendo ou não transcrição anterior relativa ao imóvel, seja caso de praticar-se, quanto a ele, algum ato de registro stricto sensu (arts. 228 e 167, da Lei 6.015/1973), ou (ii) facultativamente, propter officium (vale dizer, por iniciativa do registrador), quando presente interesse da atividade pública –trata-se só de uma aparente exceção ao princípio da instância do registro, porque não se pratica, propriamente, com a abertura da matrícula, ato algum de registro stricto sensu ou de averbação, inscrições estas, isto sim, que exigem, de comum, a observância da rogação do interessado.   

Superados bem mais de 40 anos da vigência da Lei 6.015, de 1973, era de esperar que não houvesse ainda a prática de atos (de averbação) à margem de transcrições. Todavia, prevaleceu, de fato, na praxis registral, uma compreensão das regras dos arts.169, inciso I (revogado pela Medida provisória 1.085, de 2021), 228 e 295 dessa mesma Lei 6.015 no sentido de que persistiria a possibilidade de averbações marginais às transcrições, quando o disposto no inciso I do mencionado art. 169 não fazia referência expressa à transcrição, parecendo ser apenas uma regra competencial de caráter permanente. 

Mas sobre isto prosseguiremos na próxima explanação desta série.