(da série Registros sobre Registros, n. 286)
Des. Ricardo Dip
983. O pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião deve acompanhar-se compulsoriamente −além da ata notarial e de outros documentos previstos nos incisos III e IV do art. 216-A da Lei 6.015/1973− de planta e memorial descritivo do imóvel objeto da usucapião.
Essa planta é um documento iconográfico (assim também o são os retratos, desenhos, fotografias, cartas e mapas geográficos e topográficos, ilustrações, etc.).
É também um documento que se diz indireto, vale dizer, algo que deriva do entendimento humano, diversamente do que acontece, ordinariamente, com a fotografia, a cinematografia e a fonografia, documentos estes últimos diretos, na medida em que os fatos por eles documentados se trasladam imediatamente para o meio documental, sem intermediação do intelecto.
A planta é uma das espécies cartográficas, e tem por sua característica representar, em plano horizontal, uma porção da superfície terrestre de pequenas dimensões, tomando em conta uma escala muito grande, ou seja: essa planta afere uma porção diminuta da crosta da Terra, adotando uma linha de minudências.
Daí seu uso comum para a representação de bairros, loteamentos, lotes, casas, que são coisas com dimensão relativamente exígua e que, com frequência, reclamam minúcias descritivas que não são exigíveis de mapas, porque, nestes, a representação considera maiores segmentos, sem ocupar-se de pormenores.
Compete ao registrador de imóveis verificar se a planta exibida com o pedido de declaração da usucapião preenche os requisitos básicos deste meio documental, equivale a dizer: que se trate de documento idôneo para representar o imóvel usucapiendo, permitindo conhecer-lhe as dimensões e distâncias, bem como sua relação com os prédios confinantes. Vem a propósito lembrar que, diversamente daquilo que ocorre com o croqui, a planta deve sempre conter uma escala, ou seja, a relação entre as dimensões e as distâncias reais do imóvel objeto e as dimensões e distâncias representadas no plano.
Dado o paralelismo analógico (ou espelhismo) entre o processo extrajudicial de usucapião e o exercitado na via judicial, cabe ao registrador, em caso de inidoneidade da planta, determinar-lhe a emenda ou regularização (art. 434 do Código de processo civil).
Saliente-se que essa planta é um documento particular, suscetível de arguir-se de falso (arts. 428, 429, 430-3 e 436, incs. II e III e par. ún., do mesmo Código de processo civil).
984. O memorial descritivo do imóvel usucapiendo é o documento destinado não só a textualizar o quanto possível o desenho constante da planta correspondente, mas também documento dirigido a complementar a informação da planta: algumas vezes, a planta −cuja função é a de representar no plano horizontal um determinado imóvel− não consegue esclarecer, correntemente por serem muito extensas, algumas indicações importantes (p.ex., a referência aos nomes de possuidores de um imóvel confinante ao objeto da usucapião).
É da competência do registrador verificar a harmonia entre o memorial descritivo e a planta a que essa planta se remete, de maneira que, também neste passo, pode dar-se o caso de exigirem-se esclarecimentos ou emendas antes da sequência do processamento.
- Embora o texto do inciso II do art. 216-A da Lei 6.015 refira-se a “planta e memorial descritivo” assinados, estes dois documentos devem ser subscritos por profissional legalmente habilitado, provando-se a anotação ou, quando o caso, o registro da correspondente responsabilidade técnica.
Foi a ainda agora vigente Lei 6.496/1977(de 7-12), que instituiu no Brasil a anotação de responsabilidade técnica, lendo-se em seu art. 1º: “Todo contrato, escrito ou verbal, para a execução de obras ou prestação de quaisquer serviços profissionais referentes à Engenharia, à Arquitetura e à Agronomia fica sujeito à «Anotação de Responsabilidade Técnica» (ART)”.
Essa mesma lei permitia a verificação de quais os profissionais legalmente habilitados para a elaboração da planta e do memorial descritivo engenheiros, agrônomos e arquitetos.
Consiste a referida anotação −e isto pode emprestar-se ao registro de responsabilidade técnica− no “instrumento que define, para os efeitos legais, os responsáveis técnicos pela execução de obras ou prestação de serviços relativos às profissões abrangidas pelo Sistema Confea/Crea” (Resolução 1.025, de 30-10-2009, expedido pelo Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – Confea).
Essa Resolução n. 1.025 foi editada ao tempo em que o Confea era órgão regulamentador também das atividades dos arquitetos. Advindo a Lei 12.378/2010 (de 31-12), separaram-se eles do Confea, passando a subordinar-se às autarquias correspondentes: o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil e os Conselhos de Arquitetura e Urbanismo dos Estados e do Distrito Federal.
Previu-se na referida Lei 12.378 o registro de responsabilidade técnica: “Toda realização de trabalho de competência privativa ou de atuação compartilhadas com outras profissões regulamentadas será objeto de Registro de Responsabilidade Técnica - RRT” (art. 45).
Assim, à margem da menos adequada redação do inciso II do art. 216-A da Lei n. 6.015, o que se exige é a prova documental da assunção de responsabilidade −quanto à planta e o memorial descritivo− pelo profissional legalmente habilitado.
- Os conselhos de fiscalização profissional são, de alguma sorte, entidades herdeiras das corporações medievais (designação que se adota, lato sensu, para abarcar “corporações de ofício”, “corporações dos mesteres”, “bandeiras”, “grêmios”, “corporações das artes”, “ordens”, “guildas”, “colégios”, “corporações profissionais” etc.), com algum grau de autonomia no exercício de funções de regulamentação, administração e disciplina profissional.
Tal quais as clássicas corporações de ofício, têm os conselhos profissionais contemporâneos a tendência a alguma descentralização, mas, diversamente, os conselhos atuais −este é o caso brasileiro− não raro se inclinam a uma descentralização tênue e são instituídos por lei estatal, diferentemente daquelas corporações que, em larga parte, eram criações da própria comunidade.
Além disto, os conselhos profissionais são quase sempre exclusivos e não mistos de patrões e empregados (i.e., órgãos que reúnem todas as forças de produção). Daí que se reputem “delegações estatais” −um modo de o estado delegar em autarquias seu poder de polícia− e não entidades comunitárias (vidē, a propósito do tema, brevitatis causa: MCCALL, Brian. La corporación como sociedad imperfecta. Madri: Marcial Pons, 2015; LENORMAND, Maurice. Manuel pratique du corporatisme.Paris: Félix Alcan, 1938; COORNAERT, Émile. Les corporations en France avant 1789. Paris: Ouvrières, 1968; VITAL, Fezas. Curso de direito corporativo. Lisboa: 1940).
Ficou antes indicado que, para a aplicação da Lei 13.465, o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) −quanto aos engenheiros, agrônomos e bacharéis em geografia− e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU-BR) −quanto aos arquitetos e urbanistas− são as entidades de fiscalização profissional competentes para a anotação (ou para o registro) de responsabilidade técnica de quem se habilite a elaborar planta e memorial descritivo para os processos extrajudiciais de usucapião.
É dizer que a anotação (ou registro) de responsabilidade técnica deve provir de ao menos um destes entes −suposto possa haver planta e memorial elaborados em conjunto por engenheiro e arquiteto, ou agrônomo e urbanista, etc.−, cabendo ao registrador de imóveis o controle da competência fontal da apontada responsabilização.