Registro de usucapião (décima-quarta parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 292)

Des. Ricardo Dip

1.000. A posse que legitima a usucapião −possessio ad usucapionemdeve exercitar-se cum animo domini, quer dizer, a título de dono da coisa ou do direito cuja aquisição se pretenda, e ser (i) contínua, (ii) pública, (iii) pacífica, (iv) inequívoca e (v) atual.

A continuidade da posse a que remete o inciso IV do art. 216-A da Lei brasileira 6.015, de 1973, é um termo logicamente abstrato que qualifica a posse por ser contínua, significando, com isto, uma sucessão regular, perseverante, constante, de atos materiais sobre a coisa objeto da prescrição: a posse ad usucapionem, portanto, não se contenta em ser animo solo (cf. Nequete); de onde segue deva ela confirmar-se com a prática de atos materiais que ponham à mostra que, de maneira regular, habitual, o possuidor atuou (e ainda atua) como se fora proprietário da coisa.

Todavia, essa continuidade ou perseverança possessória (pertinacia possessiva) não exige que a posse, em absoluto, seja materialmente incessante. Basta que não haja intervalos temporais estendidos, equivale a dizer, que os atos materiais não sejam infrequentes. 

A prova da continuidade da possessão ao largo do tempo é muito árdua, motivo pelo qual se adota, como se fora uma presunção, o critério de que será bastante confirmar-se a atualidade da posse e a data de seu início, presumindo-se o exercício possessório no interregno. Foi o que se solidou na sabedoria jurídica dos romanos: probatio initio et fine, medium tempus præsumitur (apud Silvério Ribeiro).

Contornamos aqui, por amor à concisão, um tema teórico interessante, qual seja o de saber se o requisito de a posse ad usucapionem ser ininterrupta é autônomo ou se, de maneira diversa, confunde-se com a continuidade. Parte da doutrina entende que a descontinuidade resulta de ato do próprio prescribente, ao passo em que a interrupção é derivada de ato de terceiro: de todo o modo, deixe-se dito que a interrupção pode ser natural ou civil; esta, por exemplo, existirá com a ação reivindicatória ajuizada contra o possuidor; aquela, a interrupção natural, pela privação da posse por mais de ano e dia.  

  Na prática –e em face daquilo que mais apresenta relevância nestes breves comentários sobre o art. 216-A da Lei 6.015–, é suficiente referir que a confirmação exigida é a da perseverança regular da posse ao largo do tempo bastante para configurar-se a usucapião. Assim, pouco relevo ou nenhum há em distinguir, quanto a essa confirmação, se uma eventual posse per saltumi.e., com intervalo significativo– provém de ato pessoal do adquirente ou se foi produzido pela intervenção de terceiro. 

1.001. A posse que dá fundamento à usucapião é, como ficou dito, a posse ad usucapionem –esta é sua natureza–, uma posse que se exercita cum animo possidendi, a posse exercida a título de dono (qual se fora o dono). 

Com isto, cabe distinguir, de um lado, a posse ad usucapionem, e, de outro lado, a mera detenção (a possessio naturalis) que não dá fundamento à usucapião (cf. art. 1.208 do Cód.civ.). 

Também com a confirmação da natureza ad usucapionem da posse, discrimina-se o simples desdobramento da posse –em posse direta e posse indireta–, assim as hipóteses, p.ex., da locação e do comodato, em que a posse direta do locatário e do comodatário não é ad usucapionem, porque não anula a posse indireta do locador e do comodante (art. 1.197). 

1.002. O tempo, como já temos dito em exposições anteriores, é um acidente das coisas corpóreas –é a medida de seu movimento–, e constitui uma categoria relevantíssima para o campo do direito, bastando cogitar em sua indispensável consideração para o exercício dos direitos de defesa (p.ex., os prazos de contestação e de recursos) e na consecução dos fins dos institutos de segurança jurídica (v.g., os termos iniciais e finais e os prazos da decadência, da prescrição, da preclusão, da prenotação etc.).

Ao passo em que o prazo é uma quantidade contínua de medição do movimento (aión), já o termo, por sua vez, é um instante de culminância (kairós), um ponto fragmentado do fluxo ou moção dos corpos: corresponde, pois, a uma quantidade discreta.

A lei, ao reportar-se à demonstração (rectius: verificação ou confirmação) do tempo da posse, visa a subsidiar a (já se disse: inviável) “atestação” desse tempo na ata notarial. O que se procura aferir diz (i) tanto com a atualidade da posse –ou seja, algo de seu tempo presente: um termo ou instante possessório atual–, (ii) quanto à duração ou extensão pretérita dessa posse, de modo que se consiga caracterizar a possessio ad usucapionem, que exige quer uma dada existência medida no tempo passado, quer, em princípio, a existência atual.

Essa prova documentária (é dizer: a prova da posse-encargo: recibos de pagamento de impostos relativos à coisa, ao dispêndio de energia elétrica, de consumo de água, etc.) a que se reporta o inciso IV do art. 216-A da Lei n. 6.015 complementa, desta maneira, a indiciação notarial da posse ad usucapionem.

O texto original da Código de processo civil de 1973 previa, no inciso I de seu art. 942, a realização de “audiência preliminar, a fim de justificar a posse”. Esta previsão revogou-se com a Lei 8.951, de 13 de dezembro de 1994, e não se revitalizou com o Código processual civil de 2015, que não manteve a autonomia legislativa do tratamento do processo de usucapião que era procedimento especial no Código de processo civil anterior. Exatamente essa audiência de justificação é o que dava caráter especial ao procedimento, porque, sem ela, estar-se-ia diante do procedimento comum ou de caráter ordinário. 

Todavia, a ata notarial da usucapião extrajudicial –adjuvada pela apresentação de documentos (inc. IV do art. 216-A da Lei 6.015)– tem a importante função de justificar a posse do solicitante, vale dizer, de instruir a inicial do processo (cf. Silvério Ribeiro, que invoca o entendimento cônsono de Pontes de Miranda). 

A exemplo do que ocorria com a audiência judicial de justificação preliminar da posse, também no processo extrajudicial de usucapião, sem os elementos que caracterizem e amparem o pleito aquisitivo é caso de extinguir de logo a pretensão (é dizer, quanto ao pedido extrajudicial, de expedir qualificação negativa).