(da série Registros sobre Registros, n. 293)
Des. Ricardo Dip
1.003. A apresentação de documentos relativa ao “tempo da posse”, ainda que tenha a direta e textualmente indicada finalidade de aferir, verificar ou confirmar o tempo atual e passado dessa posse, tem ainda, o escopo senão de identificar sua natureza ad usucapionem, ao menos o de não afastá-lo.
Este caráter de que se há de revestir a posse para a usucapião é o que se desvela em seus atributos reais de continuidade, pacificidade e ânimo dominial.
Se a confirmação dessa natureza da posse não se indiciar nos documentos exibidos (inc. IV do art. 216-A da Lei n. 6.015) ou ainda na ata notarial (inc. I), competirá ao registrador apreciar e decidir, conforme as circunstâncias, se é caso de complemento da instrução que acompanha a inicial (p.ex., indicando a apresentação de mais documentos que possam trazer referências às características da posse) ou se, à vista do conjunto dos indícios –ainda que sejam leves–, deva deferir-se para tempo ulterior a análise da questão (assim, aguardando eventual manifestação de terceiros, seja dos proprietários tabulares, seja de donos dos imóveis confinantes; ou ainda prevendo-se a realização de diligência pericial ou a tomada de depoimento de testemunhas).
1004. Os documentos relativos a pagamento de impostos –a que alude a regra do inciso IV do art. 216-A da Lei de registros públicos– são os de que podem extrair-se alguma indicação sobre a natureza, da continuidade e do tempo de posse do imóvel usucapiendo: assim, ad exemplum, os recibos de pagamento de Iptu -Imposto predial e territorial urbano ou de ITR-Imposto sobre a propriedade territorial rural. Vem a calhar, com efeito, a lei fale em impostos que incidirem sobre o imóvel.
Trata-se aí de uma categoria que se denomina posse-encargo, ou seja, de algo que pesa (ou carga) sobre a posse, é como que um encargo sobre ela. Exatamente por isto que é algo que pesa contra quem alega a posse em seu benefício, os documentos de posse-encargo tendem a favorecer quem tenha arcado com o peso a que correspondam: é do senso comum que aparente ser dono de algo quem responda pelas despesas (incluídas as tributárias) de sua conservação e regularidade jurídica.
1005. Situação assemelhada é a que tange os documentos relativos ao pagamento de taxas que incidirem sobre o imóvel: p.ex., a prova de pagamento de taxa de licença ambiental, a de localização e funcionamento, a de construções, etc.
Prevendo a normativa, de maneira expressa, a juntada de documentos referentes a pagamentos de impostos e taxas que incidam sobre o imóvel, não por isto devem reputar-se irrelevantes documentos que confirmem o pagamento de contribuições de melhoria e de preços públicos relativos ao imóvel. Já porque não se veria razão para negar, neste quadro, quer a interpretação extensiva, quer a adoção da analogia a pari, já porque a lei faz referência a “quaisquer outros documentos” (inc. IV do art. 216-A).
Assim, quando não for hipótese de taxa, o pagamento do preço público do serviço de fornecimento de água e esgoto e o de recolha de lixo também podem caracterizar a posse-encargo. Não diversamente a prova de pagamento de contribuição de melhoria (p.ex., quanto ao custeio de iluminação pública).
1006. O vernáculo autuar provém do substantivo latino actus, acti, termo que possui vários significados na origem, entre eles o de execução ou realização de algo (por brevidade de causa, cf. Torrinha, Massaud Moisés).
Autuar é praticar um ato, é atuar (“forma divergente de ato” –A. Geraldo da Cunha). Diversamente, o português auto pode também resultar proximamente de outra fonte: do grego autos (αυτός), como se encontra nos vocábulos automóvel, autodidata, autônomo, etc. Tanto, contudo, o latim actus, quanto o grego αυτός têm uma mesma fonte indoeuropeia –ag–, com a acepção de «conduzir»; vêm do grego αυτός, p.ex., as palavras portuguesas agonia, antagonista, protagonista, demagogia; e do latim actus, ativo, atividade, agitar, coação, etc.
É na raiz latina, como ficou sobredito, que se recolhe de modo próximo o vocábulo autuação, que significa executar ou realizar um ato, e, para nosso quadro do regime do processo judicial ou extrajudicial de usucapião, o termo exprime a ideia de alguma solenidade: os autos jurídicos têm sempre consigo a ideia de algum rito, assim o dos autos de fé: autillo denominava-se o auto particular dos processos nos Tribunais de Inquisição (Roberts-Pastor).
Tende-se, além disto, a considerar que um auto é uma parte de um conjunto, de uma coleção solene de atos; daí as expressões “auto de penhora”, “auto de arrecadação”, “auto de adjudicação”, etc., importarem na ideia de parte solene do ritual de um processo. (Esta nota de solenidade poderia explicar o uso da palavra «auto» com a acepção de forma de teatro, ação artística que corpos vivos executam –cf. Lanciani-Tavani–, e cuja mais remota indicação data de 1436, numa carta da chancelaria do rei Dom Duarte I, de Portugal).
A esse sentido formal concorre outro, de caráter material: autuação é dar uma capa à peça que inaugura um processo, e é nessa capa que se indicam elementos para sua identificação: nome do interessado, objeto, data etc. (De Plácido e Silva). Com isto, forma-se também um lugar de convergência das demais peças do mesmo processo, cujas folhas se vão numerando, ali atraídas em ordem sucessiva.
Disto vem que, no plural, autos sejam um conjunto de atuações ou de documentos, reunidos com observância de alguma formalidade ou solenidade.
Diz o § 1º do art. 216-A da Lei n. 6.015, de 1973, que o pedido extrajudicial de usucapião será autuado pelo registrador, o que expressa sobretudo seu significado material (“dar capa à peça que inaugura o processo”), certo sendo, no entanto, que esse processo se tem já por inaugurado com um ato extra-autos, qual seja o da prenotação do requerimento, prenotação de cuja data se contarão, procedente venha a ser o pleito de usucapião, os correspondentes efeitos declarativos de domínio (cf. art. 1.246 do Cód.civ.: “O registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo”).