Registro de usucapião (décima-terceira parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 291)

Des. Ricardo Dip

998. O requisito legal do justo título não é de exigência para todos os pleitos de usucapião, mas apenas para os casos em que o modo específico da usucapião o reclame: é o que se exige na usucapião ordinária. 

O conceito de justo título, no que diz respeito à usucapião, corresponde ao de justa causa, e, portanto, sendo uma causa, é algo que, convencional, deve anteceder e, assim, justificar a aquisição pretendida. 

Alguns atos aquisitivos, embora sejam originários de alguma causa, não são oriundos de uma precedente convenção justificadora ꟷpor essa razão, dizem-se atos primários (p.ex., a aceitação de uma herança, a ocupação de res nullius ou de res derelicta, etc.). Outros atos demandam como causa um acordo de vontades (v.g., a compra e venda).

O direito imobiliário brasileiro, recolhendo o sistema romano, fundamenta-se, quanto aos atos inter vivos, na relação entre causa (ou título) e modo (antigamente: transcrição; agora: registro), ou, por diverso aspecto, entre potência e ato.

Ora, o justo título, quanto ao domínio dos imóveis, é, numa primeira vista, a causa pela qual alguém adquiriu ou recebeu esses imóveis, vale dizer: o fundamento do direito, que, em relação ao domínio, corresponde, em palavras de Clóvis Beviláqua, ao “fato jurídico [lato sensu] pelo qual a propriedade se adquire ou transfere, como a venda, a troca, a dação em pagamento, a doação o legado”.

  Não basta, contudo, que se trate de um título qualquer, porque deve ser um justo título, um título justo, ou seja, uma causa que se encontra moldada às formas do direito. Os justos títulos são sempre causas típicas (Álvaro D’Ors), são sempre causas aquisitivas que, em abstrato, permitiriam a realização do efeito (ou seja, o movimento aquisitivo pelo qual a potência de aquisição ꟷcausa adquirendiꟷ transitaria ao ato ou consequente aquisitivo; movimento é, exatamente, a passagem de uma potência ao ato).

Diz Benedito Silvério Ribeiro que, para ser justo, um título deve ter a qualidade abstrata de transferir a propriedade, isto é, deve ser um fato jurídico ꟷem sentido lato (ou, mais especificamente, um negócio jurídico)ꟷ “que tenha o poder em tese de efetuar a transmissão”, embora, em concreto, faltem-lhe os supostos para que a transmissão se efetue.

O saudoso e grande civilista que foi Luciano de Camargo Penteado ensinou, a propósito do justo título, que sua formalidade mínima é a literalidade (não é título justo simples acordo oral), e que, além disso, o título “deve ser apto a transferir o direito real postulado”, de modo que só não atinja seu fim por apresentar deficiências que, em abstrato, não impediriam o efeito desejado. O título só se reputa justo quando é abstratamente válido, quer dizer, “quando conforme com as regras de validade do negócio jurídico em geral”.

Desta maneira, uma escritura pública, elaborada com observância de seus requisitos de forma, mas em que o alienante não seja o disponente segundo o registro (ex.: Mateus é o alienante; o imóvel, todavia, está registrado em nome de José) é um justo título, porque seus efeitos só não se produzem por um obstáculo concreto extrínseco ꟷou seja, exterior ao títuloꟷ, assim o que caracteriza, no exemplo indicado, uma aquisição a non domino

Diversamente, um instrumento de caráter privado não será justo título para a aquisição de um imóvel cujo valor suplante o limite estabelecido no art. 108 do vigente Código civil brasileiro (trinta salários mínimos nacionais), porque o obstáculo se reconhece no próprio título. Não se trata aí de um vício externo, mas de um defeito intrínseco, uma violação, pela só forma, da regularidade do convênio causal.

O fato de um título não ser justo impede a usucapião ordinária, mas não impede que o processamento possa atender a uma diversa possibilidade aquisitiva, a da usucapião extraordinária.  

999. Referindo-se o inciso IV do art. 216-A da Lei 6.015/1973 à origem da posse, com isto abarca três supostos: um, material, o da possibilidade de exercitar-se, em nome próprio, algum dos atributos do domínio da coisa; outro, temporal, delimitando-se o termo a quo da posse;  o terceiro elemento, enfim, é o jurídico, identificando-se a causa ou título da possessão. Ao impor que se demonstre a origem da posse, o que a lei exige confirmar, pois, é 

(i) se há possessão de um dado imóvel, 

(ii) por que se deu a investidura possessória correspondente 

(iii) e em qual tempo inicial.

Diz o Código civil brasileiro em vigor (art. 1.204) que a posse se adquire “desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade” (vidē também o art. 1.196). Na sequência, seu art. 1.205 diz quem pode adquirir a posse, mas não se manteve no texto do Código atual a disposição que, em nosso Código civil de 1916, estabelecia, no art. 493, que o empossamento poderia ocorrer (i) pela apreensão da coisa, (ii) o exercício do direito, (iii) o fato de dispor-se da coisa ou do direito ou (iv) “por qualquer dos modos de aquisição em geral”.

É clássica a divisão dos modos aquisitivos da posse em originário (ou seja, sem o concurso do consentimento do possuidor precedente) e derivado (em que se dá exatamente o consentimento de quem anteriormente estava na posse da coisa). 

É importante verificar o modo com que se adquiriu a possessão, porque, se originário, a posse adquirida não se contamina pelos defeitos que pesem sobre a posse anterior, ao passo em que, diversamente, se seu modo aquisitivo foi derivado, a posse, em princípio, mantém “o mesmo caráter com que foi adquirida” (art. 1.203 do Cód.civ.), cabendo aqui referir, no entanto, a exceção prevista na parte final do art. 1.207 do Código, facultando-se ao sucessor singular a união de sua posse à do antecessor (cf. também art. 1.243; sucessor singular é o beneficiário de um bem certo, determinado).

A “demonstração” da origem, assim a preceitua o art. 216-A da Lei 6.015, visa ainda a, o quanto possível, verificar se há verdadeira posse do imóvel (art. 1.208 do Cód.civ.), se ela é justa (art. 1.200) e em qual tempo começou (o que é relevante para os fins de caracterizar a modalidade e a mesma possibilidade da usucapião pretendida: arts. 1.238 et sqq.).