Registro de usucapião (décima-segunda parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 290)

Des. Ricardo Dip

994. O inciso III do art. 216-A da Lei 6.015 prevê que a inicial do processo extrajudiciário de usucapião se instrua com “certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente”.

Certidão é uma das espécies de cópia documental emitida por quem possui atribuição, nos termos da lei, para expedi-la, afirmando-lhe a conformidade com o original correspondente (fides atestationis). 

É, portanto, um documento segundo, vale dizer, com Carnelutti, que é um documento de documento, um documento de grau secundário, porque é um documento que representa outro documento, representa o documento de primeiro grau, que é aquele que denomina documento original, que é, conforme palavras de Lopes da Costa, “o escrito em que, de origem, se lançou o ato”.

  Esse original pode fazer parte de um livro (p.ex., o protocolo das notas, um livro dos registros, um livro de uma repartição administrativa) ou constar de autos de processo ou de procedimento judicial, legislativo, administrativo, notarial e registral. A cópia de documento autônomo (papel avulso), ainda que se possa denominar impropriamente certidão, configura, em sentido estrito, uma pública forma.  

A atribuição para emitir certidão é resultante da lei, e é também da lei que emana a fé pública certificante (fides atestationis), dando-se à certidão eficácia de presunção ordinariamente iuris tantum, observados, entretanto, os limites próprios a uma dúplice correspondência com o documento original. Isto quer dizer: a certidão frui da presunção de veracidade quanto à existência do assento ou da documentação original e de seu teor (ou dictum), não acrescentando, entretanto, maior valor de verificação do fato documentado do que esse mesmo fato apresenta no original. Ou seja, se o fato referido no original goza de presunção de veracidade, essa mesma presunção se recolhe de sua certidão; diversamente, se o fato não se reveste dessa presunção, tampouco a terá, nesta parte, a certidão, ainda que desfrute da presunção relativa de que (i) o documento original exista e (ii) seu teor se harmonize com a menção certificada. 

Desta maneira, devem distinguir-se o dictum da certidão e o factum a que ela se refere: o dictum da certidão sempre atrai a presunção correntemente iuris tantum de sua correspondência com a realidade do dictum do documento original; mas, de modo diverso, o factum referido na certidão só se favorecerá da presunção se o factum do original também se beneficiar dela.

A exatidão do dito na certidão significa sua harmonia com o original, não, porém, sua compulsiva integralidade ou especulação verbo ad verbum, porque se admite, além da certidão de inteiro teor, sua espécie em extrato (certidão parcial, sumária, em breve relatório).   

A certidão pode ser positiva ou negativa quanto à existência de dado assentamento, documento ou fato. Em ambas as hipóteses haverá presunção de veracidade; cabe, todavia, indicar uma distinção: as duas, positiva e negativa, têm de ser referentes a fatos definidos. A certidão positiva, por evidente, afirma um fato delimitado, demarcado, definido, mas já a negativa, deixando de afirmar algo, exige sempre uma correspondente limitação temporal e geográfica, porque, ao revés da certidão positiva ꟷque já, por definição, se reporta a um fato determinado que nela se asseveraꟷ, a negativa poderia, em tese, empolgar uma vacuidade factual alargada ao plano até de uma indeterminação. O que se reclama, a propósito, pois, é que a negação se estabeleça dentro de marcos emoldurantes de um tempo e de um espaço determinativos da situação do fato objeto. De não ser assim, a certidão seria um meio de prova de fato indeterminado, o que é impossível ou praticamente isto.  

  1. Como ficou dito, refere-se o inciso III do art. 216-A da Lei de registos públicos às certidões negativas dos distribuidores.

De duas maneiras pode falar-se em distribuidor processual. Pela primeira, significando o ofício ou cartório judicial ꟷou seja, a repartição da organização judiciáriaꟷ em que se procede à divisão ou partilha das causas entre vários juízes e escrivães que tenham competência para as causas a dividir. Numa segunda maneira, entende-se o distribuidor a pessoa física que ocupe o cargo ou exerça a função de repartir as causas no cartório judicial correspondente.

Já as Ordenações filipinas, entre nós, em seu livro I, tratavam da distribuição: “os Scrivães dante os Desembargadores do Paço hão de ter um Distribuidor…” (título XXIV, § 4), e ficavam os escrivães dos autos de agravos e de cartas testemunháveis avisados de que nada neles escrevessem ou juntassem “antes de lhes serem distribuidos, sob pena de perdimento dos Officios” (§ 6). Os Códigos de processo civil brasileiros de 1939 (arts. 50 a 52) e de 1973 (arts. 251 a 257), a exemplo do vigente Código processual civil (arts, 284 a 290), também impuseram a distribuição das causas (cíveis, por evidente); a distribuição também se prevê, entre outros diplomas legislativos, na Consolidação das Leis do Trabalho (arts. 713 a 715) e no Código de processo penal (art. 75).

Consiste a distribuição de causas judiciais numa série de atos ꟷrotineiramente mediante sorteioꟷ visando a repartir os pleitos entre juízos ou varas (em primeiro grau) ou entre relatores ou assentos de relatoria nos tribunais, bem como a dividir essas causas entre as várias seções ou cartórios da secretaria dos fóruns ou das cortes. 

A finalidade dessa distribuição é, principalmente, mas não só, a de estabelecer o quanto possível a paridade dos serviços, servindo também para evitar o direcionamento de causas a juiz ou escrivão escolhidos pelo interessado ꟷo que levaria a uma prevenção apriorística e seletiva. Em algumas legislações, a distribuição também tratava de igualar os estipêndios que auferiam juízes e funcionários em proporção com o valor das causas.  

É despicienda a distribuição de causas quando no fórum não haja mais que um juiz e um escrivão exercendo suas funções (doutrina de Carvalho Santos), mas, no Brasil, entre agosto de 1816 e setembro de 1827, a distribuição era compulsória ainda quando houvesse um só escrivão no foro (Cândido Mendes de Almeida). O Código de processo civil brasileiro em vigor, prevendo o registro de todas as causas (o que, ordinariamente, ocorre no ofício do distribuidor), impõe sejam elas distribuídas “onde houver mais de um juiz” (art. 284), por meio de sorteio (é dizer, atribuição aleatória), “obedecendo-se rigorosa igualdade” (art. 285). 

  1. Distribuidor de uma comarca é o ofício judicial ou a pessoa que nele se incumbe de repartir (sortear) as causas em um território delimitado.

Nosso vernáculo comarca provém do vocábulo germânico Mark, com a acepção de limite, linde, fronteira, e pode conceituar-se o território ou circunscrição territorial demarcada “pelos limites em que se encerra a jurisdição de um Juiz de Direito” (De Plácido e Silva).    

  1. Preceitua a lei que se apresente, com o pedido inicial de processamento extrajudicial de usucapião, certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel

Uma comarca pode ser dividida em vários segmentos, distritos ou termos (fala-se ainda em circunscrição, palavra neste passo ambígua, porque também pode significar o mesmo que comarca ou, diversamente, uma reunião de comarcas).

A certidão exigida é a da comarca, não bastante a de um termo (ou distrito), ainda que nesse termo se situe o prédio usucapiendo. Tampouco, entretanto, impõe-se a exibição de certidões dos distribuidores de toda a circunscrição (com o sentido de abrangência de mais de uma comarca).

A lei usa o plural “distribuidores”, abarcando, pois, quando menos, os cartórios de distribuição das justiças estadual e federal, civil, criminal e trabalhista. Não parece, entretanto, que deva estender-se a exigência para abranger as justiças eleitoral e militar (cf., neste sentido, Leonardo Brandelli).