Registro de usucapião (décima-sexta parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 294)

Des. Ricardo Dip

 

1007. Uma vez apresentado ao registrador, deve o pedido de usucapião prenotar-se, ou seja, inscrever-se no Livro 1 -Protocolo do cartório competente (cf. inc. I do art. 173 da Lei 6.015, de 1973). 

O Código civil brasileiro prevê, em seu art. 1.246, ser a inscrição “eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo”, e dispõe a Lei 6.015 que “todos os títulos tomarão, no Protocolo, o número de ordem que lhes competir em razão da sequência rigorosa de sua apresentação”, prosseguindo no art. 186: “O número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um título simultaneamente”.

Que é prenotar? Prenotar é marcar previamente, sinalizar ou inscrever antecipadamente, e, como se referiu, o protocolo do registro de imóveis é o nome de seu Livro 1, com cujo número se confirma a ideia que ostenta o vocábulo «protocolo» (do latim protocollum, protocolli): o «primeiro», «o que tem primazia». 

Mas esse caráter de primazia exige um critério: primeiro, está bem, mas primeiro segundo qual ordem, segundo qual critério? 

No registro de imóveis, a primazia segue o critério cronológico, equivale a dizer que da anterioridade no tempo nasce alguma superioridade no direito. Isto corresponde à noção de melhor aproveitamento do tempo, acolhendo-se a célebre parêmia prior in tempore, potius in iure (primeiro no tempo, melhor no direito). Este aforismo parece derivar de um direito medieval de uso dos moinhos públicos: conforme os estudos de Josué Modesto Passos, firmou-se entre os germanos o princípio wer zuerst kommt, mahlt zuerst, que corresponde ao latim qui primus venerit, primus molet (quem chega primeiro, mói primeiro); isto foi recolhido por Erasmo de Roterdam em seu Adagiorum chiliades, publicado em 1536. 

Assinale-se que essa ideia de primazia temporal levar à superioridade tem um episódio emblemático no Antigo Testamento, com o escambo dos direitos de primogenitura de Esaú, por um prato de lentilha, em benefício de Jacó (Gên. 25-27 et sqq.).

Prenotado (ou protocolizado) o título, têm-se logo os efeitos formais da prenotação, desde que se tenha lançado a inscrição no Protocolo do cartório competente. Assim, não calha extrair efeitos de primazia jurídica se a prenotação se faz, p.ex., no protocolo judicial (o que ocorre com a praxe –de todo heterodoxa– da dúvida inversa) ou em protocolo de cartório não competente, seja em razão da matéria (v.g., inscrição no Protocolo do registro de títulos e documentos, inc. I do art. 132 da Lei n. 6.015), seja em razão da comarca da situação do imóvel usucapiendo: assim, se o prédio objeto se localizar na cidade paranaense de Guarapuava, de prenotação que seja feita, por exemplo, na cidade paulista de Miguelópolis não se extrairão os efeitos da primazia jurídica esperada do protocolo.

  Todavia, se na comarca da situação do imóvel houver mais de um cartório, a lei não prevê, de maneira expressa, competência territorial absoluta de nenhum deles –a regulação que há somente emana de regulação judicial–, de sorte que se estima razoável, secundum legem, admitir a natureza relativa da competência de circunscrição dentro na comarca, não sendo implausível entenderem-se admitidos os efeitos da prenotação em qualquer desses cartórios de registro de imóveis da comarca do lugar do imóvel: com efeito, lê-se no caput do art. 216-A da Lei 6.015/1973 que o pedido de usucapião “será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo”.

  Se o prédio usucapiendo estiver situado em comarcas limítrofes, atraindo a previsão do inciso II do art. 169 da Lei de registros públicos (“os registros relativos a imóveis situados em comarcas ou circunscrições limítrofes, que serão feitos em todas elas, devendo os Registros de Imóveis fazer constar dos registros tal ocorrência”), a prenotação em qualquer dos cartórios competentes produz os efeitos jurídicos próprios.

  1.     Tal se vê do § 1º do art. 216-A da Lei 6.015, prorroga-se o prazo da prenotação do pedido de registro de usucapião, “até o acolhimento ou a rejeição” desse mesmo pedido.

Da prenotação de um título no livro 1 do registro de imóveis emana um conjunto de efeitos a que se designa “prioridade registral”, abrangendo quer um aspecto material ou substantivo, quanto outro, formal ou adjetivo.

  A prioridade registral substantiva (ou material) concerne a efeitos externos ao registro –p.ex., a eficácia processual, quer defensiva, quer ofensiva, conta-se da data do protocolo e não do posterior registro do título (cf. art. 1.246 do Cód.civ.bras.: “O registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo”).

Já a prioridade formal atua limitadamente no âmbito interno do registro: (i) como preferência temporal na qualificação, vale por dizer que o título protocolizado deve ser qualificado, em princípio (ou seja, ressalvadas as exceções legais), com precedência a todos os que o sucedam no tempo de apresentação (e aqui não tem importância alguma que o título posterior seja ou não concorrente com o que frui da preferência); (ii) como entrave ao registro dos títulos que, apresentados de maneira sucessiva ao prenotado, com ele confrontem.

Feita a prenotação do título (ou, na hipótese do processo extrajudicial de usucapião, prenotação do pedido), abre-se a fase da pendência da inscrição –pendens inscriptionis–, que constitui um pressuposto negativo para o registro dos títulos posteriores.  

Mas os efeitos dessa pendência são distintos conforme suas espécies: se a pendência da inscrição é homogênea (relativa a inscrição de títulos substancialmente idênticos: p.ex., levam-se ao protocolo duas certidões da mesma escritura notarial), a segunda solicitação deve ser qualificada de maneira negativa, em virtude de não atender ao pressuposto negativo da pendens inscriptionis.

  Se, todavia, a pendência de inscrição for heterogênea –é a que se dá quando os títulos não são substancialmente idênticos, mas têm por objeto um mesmo imóvel–, a solução registral é imediatamente suspensiva do registro do título posterior até que se resolva a inscrição do título que frui da preferência no protocolo.

Em ambos os quadros de pendência de inscrição, dá-se, com a prenotação, o efeito de clausura, seja definitiva (com a pendência homogênea –que é fato raro), seja prontamente suspensiva (pendência heterogênea).

Excepcionalmente –muito excepcionalmente–, pode admitir-se a hipótese de uma pendência de registo sem efeito de clausura das inscrições. Isto corresponde ao que se tem denominado eficácia registral meramente prenotante e que consiste, em suma, na eventual inoponibilidade –por ineficácia relativa– das inscrições sucessivas à prenotação precedente (cf., p.ex., no direito italiano, a referência à eficacia prenotativa:   Giovanni Gabrielli, “La pubblicità immobiliare del contrato preliminare”, in Rivista di diritto civile. Pádua: Cedam, 1997, parte prima, p. 534). 

Voltaremos ao tema.