Registro de usucapião (sétima parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 285)

                                Des. Ricardo Dip

                  982. Acerca da ata notarial exigida como requisito para o processo extrajudiciário de usucapião, cabem aqui algumas considerações, ainda que breves, sobre os meios de que pode valer-se o notário para a recolha dos fatos sensíveis objeto da narrativa da ata. O tema atende, especialmente, ao capítulo da fé pública notarial, e, de maneira simplificadora, pode particularizar-se com a indagação relativa ao uso de um veículo aéreo controlado de maneira remota (drone) para elaborar a ata notarial prevista no inciso I do art. 216-A da Lei n. 6.015?

Para responder a esta indagação, é importante distinguir. Não se negará, é certo e à partida, que um notário (causa eficiente principal da ata) possa valer-se de um meio material (causa eficiente instrumental ou secundária) para expedir o documento público; com efeito, não parecer haver dúvida em que o tabelião possa utilizar máquinas para a extração corpórea do documento (p.ex., uma impressora) ou que possa também valer-se de meios instrumentais para subsidiar o exercício da fé de conhecimento.

O que, contudo, cabe distinguir, de uma parte, é a captação sensória imediata (direta) do fato sensível objeto da ata, e, de outra parte, a captação sensória mediata (indireta) desse mesmo fato, equivale a dizer, a captação não do fato, directe, mas da imagem do fato fotografado, filmado, captado por meio eletrônico.

Se, é verdade, nada há que impeça afirme o notário ter ele captado pelos sentidos externos e percepcionado pelos sentidos internos uma imagem visualizada, v.g., numa tela de computador, isto não equivale a que possa esse notário afirmar ter visto o fato sensível correspondente a essa imagem. Não, não, não o viu.

Não se cuida aqui −mas isto, de toda a sorte, já seria suficiente− da salvaguarda relevante da imediatidade da relação de conhecimento sensório entre o tabelião e o fato sensível captado. Bastaria isto, porque a fé pública notarial se ancora no conhecimento daquilo que o notário vê (ou ouve) por seus próprios sentidos (visão e audição); e como sempre se exige, ainda quando se trate de captação auditiva, a visão do fato pelo notário, é o momento de formação ou autoria da fé pública notarial, propriamente, um momento de evidência, um tempo em que o notário −no expressivo e autorizado ensinamento de Rafael Núñez Lagos− tem “el contacto directo de los hechos” (princípio de imediação notarial), ou seja (continuava o mesmo emérito doutrinador) quando “los hechos, las personas o las cosas se muestran a la videntia directa e inmediata del funcionario”.

Não é demasiado dizer que a anomalia produzida no momento de formação (ou autoria) da fé pública notarial contamina o tempo ou momento dos destinatários, vale dizer, importa num comprometimento da própria fé daqueles a quem se destina o instrumento público.

É que, de não haver videntia notarial formativa de fé pública, não há, de conseguinte, conexão entre fato sensível e documento (scl., entre factum ou actum e dictum), e a fidúcia dos destinatários não pode produzir-se.

Uma coisa é que o notário possa valer-se de um meio subsidiário para ver imediatamente o fato sensível, outra é que veja uma imagem desse fato (uma fotografia, um filme, uma transmissão de sua imagem quase em tempo real etc.). Nesta última referida hipótese, pode ele apenas dizer que viu uma imagem fotográfica, cinematográfica, eletrônica do fato; mas não pode dizer que viu o fato.

Insista-se um tanto mais: uma coisa é a captação mediata de um fato −por meio de fotografias, filmes ou transmissões “ao vivo” de imagens−, e outra, bastante diversa, é a captação direta desse fato pela videntia do notário.

Além da importância manifesta de salvaguardar os elementos essenciais da formação da fé pública −que, sendo sempre uma delegação de parcela da potestade política (soberania política), não pode exercitar-se em contorno do estatuto de sua excepcional concessão (não é custoso sublinhar: a tenência da fé pública é uma qualidade nobilíssima e, dada sua relevância, não pode ser excedida em seus limites)−, calha ainda salientar que a deficiência na captação notarial imediata do fato sensível propicia o grave risco das imagens preparadas.

A informação tabelioa é direta, imediata, quando se capta pessoalmente, ou seja, sem médio entre o notário e o fato captado (e percebido). Já essa informação será mediatizada quando se veicula por um meio que a faz chegar ao notário.

Ora, do fato sensível tem-se uma imagem natural (quer dizer, uma imagem que participa da realidade das coisas −fato partícipe da natura rerum). Diversamente, diz-se imagem preparada (na lição de Maria Esther Perea de Martinez) a que se obtém por um instrumento ou ferramenta (desenhos, fotos, pinturas, imagens cinéticas ou eletrônicas, etc.).

Não é raro, infelizmente não o é (e a indicá-lo aí estão as mostras de falso, que, mal se sabe por quê, resolveram designar com palavras em inglês −fake news), não é raro, repita-se, que as imagens preparadas sejam também imagens manipuladas (isto é mesmo de todo frequente e aceite dentro de certo limite nas imagens comerciais, porque o público destinatário compreende que se trata de imagens propositadamente alteradas).

Tem-se, pois, grave risco de a captação notarial mediata de um fato levar a um conhecimento distorcido da realidade das coisas, o que é um motivo adicional para exigir que a ata notarial, para o processo extrajudicial de usucapião, observe os requisitos de pessoalidade e de imediatidade do conhecimento do notário, proibindo-se quer a audiência mediatizada de testemunhas, quer a inspeção do imóvel por imagem preparada.

Isto não estorva, todavia, o uso subsidiário de meios que facilitem e beneficiem o conhecimento sensório do notário sobre fatos, pessoal e imediatamente captados por seus sentidos externos (de visão e audição) e percepcionados, na sequência, por seus sentidos internos (memória, fantasia, senso comum e cogitativa).