Sobre o art. 172 da Lei de registros públicos (primeira parte)

           (da série Registros sobre Registros n. 444)

                                                             Des. Ricardo Dip

1.255.   Lê-se no art. 172 da Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973: “No Registro de Imóveis serão feitos, nos termos desta Lei, o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, inter vivos ou mortis causa, quer para sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para a sua disponibilidade”.

           Trata-se, com esse enunciado, de um largo conceito que define a instituição do registro de imóveis, indicando-se suas causas. Não se nega que seja um conceito claro, exato e que corresponde realmente à coisa definida, padecendo, embora, de dois problemas, um, de ordem lógica (qual o de não ser breve), outro, de lugar, porque, como é clássico afirmá-lo, não deve a lei enunciar definições.

           Vejamos as causas referidas no conceito expresso no apontado art. 172:

•          causa material:    os títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei;

•          causa formal: o registro e a averbação;

•          causa final: a constituição, transferência e extinção dos direitos reais imobiliários, sua validade em relação a terceiros, e sua disponibilidade;

•          causa eficiente: “no Registro de Imóveis serão feitos” (implicita-se que alguém, nesse ofício registral, realize o registro e a averbação).

           Esse conceito expedido no texto do art. 172 da Lei 6.015, é uma definição de caráter metafísico (i.e., refere as causas do definido) e não de natureza lógica (a que indica o gênero e a diferença específica). É preciso, reitere-se, admitir que, ordinariamente, na prática jurídica e, talvez mais incisivamente, nas leis, a definição não é bem-vinda, porque traz consigo riscos testemunhados largamente na história do direito. Vem de Javoleno, numa passagem do Digesto, a sentença de que a definição, no campo jurídico, é sempre perigosa −in iuri civile periculosa est− e ele a estendeu a toda sorte de definição no direito: “Omnis definitio”, porque é difícil que, com a sequência de casos, não possa alterar-se o conceito-, distinguindo-se, no entanto, quanto ao fato de a definição não ser perigosa no âmbito didático (assim já o disse o romanista Antonio Carcaterra, citado por Vallet de Goytisolo, Metodología de la determinación del derecho, Madrid, ed. Centro de Estudios Ramón Areces, 1994, tomo I, p. 69). A razão do perigo das definições jurídicas, observou Max Kaser, está em que elas carregam “o perigo de perder seu valor ao compreender demasiados casos ou muito poucos casos” (apud Vallet, p. 70). Não diversamente, disse Fritz Schulz: “Conceitos e regras gerais estão sempre a caminho de causar desastre, porque as possíveis complicações da vida não podem ser integralmente avaliadas por ocasião da formulação da regra de direito” (in Princípios do direito romano, tradução de Josué Modesto Passos, Presidente Prudente, ed. Filomática Sorocabana, 2020, p. 29).

           Sem embargo disso, não se perca de vista −para a esfera metodológica da ciência expositiva e explicativa do direito− que a definição é, classicamente, o primeiro modo de saber (seguido da divisão e do argumento), e já vinha alistada como um lugar comum na Retórica de Aristóteles; referindo-se ele a alguns precedentes da Grécia (Ifícrates, os tiranicidas Harmódio e Aristogitón, além de mencionar Sócrates), concluiu: “Todos eles, pois, definem e partem da definição essencial para argumentar sobre aquilo de que falam” (Bkk. 1.398 a 15 et sqq.). Embora designados como «tópicos gerais», os «lugares comuns» alistados, na excelente obra Trivium e quadrivium, da coleção de artes liberais (Porto Alegre, Instituto Cultural Hugo de São Vítor, 2020, vol. I, p. 143), dão primazia para a definição (aquilo que diz o que é a coisa).

           Em nossos tempos, parece não se dar muita atenção à  tópica aristotélica, e isso talvez, é bastante provável, pode tributar-se ao surgimento da tópica de máximas de Theodor Viehweg (1907-1988), que se afastou, com seu mero “catálogo de regras”, da finalidade da tópica realista de Aristóteles dirigida a discernir as diferenças e semelhanças entre as coisas, assim como os diversos sentidos das palavras, suas homônimas e suas opostas, suas causas, gêneros, definições, comparação; ou seja, tratava Aristóteles, com sua tópica, de discernir a realidade em todos seus matizes, bem como a exata adequação das palavras a essa realidade (cf., a propósito, a fundada crítica de Vallet, p. 56-58).

           Bem se apontou, no conceito legal ora em exame, serem causa material do registro imobiliário os “títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, inter vivos ou mortis causa”. Vale dizer, o que se inscreve no registro de imóveis é a matéria dos títulos −ou, em outras palavras, os títulos quanto a sua matéria (p.ex., o bem de família, a hipoteca, a servidão, o usufruto, a enfiteuse, a compra e venda, a permuta, a dação em pagamento, etc.)−, e não a forma dos títulos, ou, em outros termos, os títulos quanto a sua forma (v.g., a escritura, a carta de sentença, a carta de adjudicação, a carta de arrematação, o mandado, o formal de partilha, o instrumento particular, et reliqua).

           A despeito do acertado dessa indicação quanto à causa material do que se registra ou se averba no ofício imobiliário, esse art. 172 foi muita vez desprezado por algumas previsões da mesma Lei 6.015. Assim é que, p.ex., o n. 3 do item I de seu art. 167 acolhe o registro “dos contratos de locação de prédios”; o n. 9 do mesmo item, o registro “dos contratos de compromisso de compra e venda de cessão deste e de promessa de cessão”; o n. 15, “dos contratos de penhor rural”; o n. 18, “dos contratos de promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas condominiais e de promessa de permuta”; o n. 20,  “dos contratos de promessa de compra e venda de terrenos loteados”; o n. 23, “dos julgados e atos jurídicos entre vivos que dividirem imóveis ou os demarcarem inclusive nos casos de incorporação que resultarem em constituição de condomínio e atribuírem uma ou mais unidades aos incorporadores”; o n. 24, “das sentenças que nos inventários, arrolamentos e partilhas, adjudicarem bens de raiz em pagamento das dívidas da herança”; o n. 28, “das sentenças que nos inventários, arrolamentos e partilhas, adjudicarem bens de raiz em pagamento das dívidas da herança”; o n. 37, “dos termos administrativos ou das sentenças declaratórias da concessão de uso especial para fins de moradia”; o n. 46 “do ato de tombamento definitivo, sem conteúdo financeiro”, etc.

           Prosseguiremos.