(da série Registros sobre Registros n. 445)
Des. Ricardo Dip
1.256. Continuemos, nesta exposição, a apreciar o disposto no art. 172 da Lei brasileira 6.015, que assim enuncia: “No Registro de Imóveis serão feitos, nos termos desta Lei, o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, inter vivos ou mortis causa, quer para sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para a sua disponibilidade“.
Observamos na explanação anterior que, embora um tanto longa, a definição constante desse art. 172 é clara e exata, acomodada à realidade ordinária das coisas, por mais que seja perigosa a prática definitória em leis, na medida em que, não raro, a definição legal −em palavras de Max Kaser− compreende “demasiados casos ou muito poucos casos”. Ver-se-á adiante, a título ilustrativo, que, a despeito de afeiçoar-se ao comum das coisas, o conceito legal em exame padece de alguma deficiência quanto a algo que, todavia, um tanto raramente ocorre na realidade.
Fizemos ver ainda que o conceito desfiado no referido art. 172 é de natureza metafísica, ao indicar as causas da instituição do registro de imóveis, a começar, ainda que maneira implícita, pela causa eficiente ou agente (o oficial do registro ou quem lhe faça as vezes), seguindo-se a enunciação da causa material: os “títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei”.
Fala-se aí em “títulos ou atos”, o que consiste em fatos jurídicos lato sensu, compreendendo a totalidade das ocorrências da vida real de que resulte algum consequente na ordem do direito. A primeira distinção que vem logo aos olhos é entre, de um lado, o fato juridicamente relevante (ou seja: o que produz efeitos jurídicos) e o fato neutral ou ajurídico, que, embora real, seja indiferente para o direito. Há fatos que, reais, não se consideram importantes para a esfera jurídica: p.ex., “dar um passeio depois do jantar” (Manuel Domingues de Andrade); “cofiar a barba”, tal parece que o fazia Dom Sancho I, o Único, personagem de um dos maiores, senão o maior dos literatos argentinos, Leonardo Castellani; “a funesta mania de pensar”, como o disse talvez o Padre Ramón Dou. Trata-se aí de fatos simples a que, seja por lei natural, seja por lei determinativa humana, não se atribui nenhum consequente jurídico. Mas, note-se bem, se quem dá um passeio depois do jantar assim o faz deixando, por exemplo, o posto da vigilância que deveria conservar, já esse fato não será indiferente para o direito.
Esses fatos jurídicos −tomados em acepção lata− podem resultar da intervenção da vontade ou, em vez disso, ser involuntário, ser um fato natural. Aqueles podem ser classificados em atos jurídicos e negócios jurídicos. Os primeiros, os atos jurídicos, consistem em uma simples manifestação de vontade idônea a produzir, sem um necessário concurso de outrem, um consequente jurídico que não pode ser objeto de escolha pelo agente, salvo quanto à faculdade de promovê-lo (v.g., a interpelação do devedor para constituí-lo em mora, a invenção de um tesouro, a criação de uma obra de arte −ainda aqui os exemplos são de Manuel Domingues de Andrade, cujas lições trilhamos; o ato legislativo, o ato administrativo, a sentença dos juízes −assim os refere José de Oliveira Ascensão).
Já os negócios jurídicos são os fatos em que se exercita a autonomia privada, ou seja, em que as partes elegem os efeitos jurídicos a que ficarão vinculadas (p.ex., uma compra e venda, um testamento, um empréstimo, uma doação, etc.).
O art. 172 da Lei 6.015 prevê possam inscrever-se no ofício imobiliário os títulos (ou atos) “constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis”, acrescentando admitirem-se esses títulos quer sejam inter vivos ou sejam causa mortis.
Aqui se encontra uma lacuna, porque há títulos propícios à inscrição imobiliária −é dizer, idôneos à produção de consequentes jurídicos quanto a bens imóveis− que não são inter vivos, nem mortis causa, ou, mais exatamente, que não são fatos humanos voluntários (atos jurídicos ou negócios jurídicos), nem fatos humanos involuntários (p.ex., o nascimento, o parentesco, a morte), senão que fatos naturais independentes de todo da ação humana. Tenham-se em conta, neste passo, as hipóteses da avulsão, da aluvião, da formação de ilhas, do álveo abandonado, hipóteses todas que frequentemente repercutem na situação imobiliária factual e de domínio, com seu consequente recrutamento no registro.
Os títulos de que se trata no art. 172 são constitutivos, declaratórios, translativos ou extintivos de direitos reais sobre imóveis.
Constitutivos são os títulos ou atos aquisitivos de um direito. Num sistema de título e modo, vale dizer, de tradição ou transcrição, pareceria melhor falar-se em títulos institutivos e não constitutivos de direitos reais sobre imóveis, porque, em rigor, esses títulos não constituem o direito real, uma vez que sempre dependem de atender-se à condição do registro. Este, o registro, é que é constitutivo, porque é ele que determina e atualiza a matéria, ou seja, efetiva a “passagem ao ato”. O título é meramente potência de constituição; nada constitui, em verdade, sem que a forma lhe seja, por assim dizer, moldada.
Declaratórios de direitos reais imobiliários são os títulos que expressam um direito real já antes constituído (p.ex.: a usucapião, aquisição originária declarada em sentença judicial ou extrajudicial; a aquisição sucessória).
Translativos são os atos de aquisição derivada em que há mudança de titularidade do direito. A referência legal a títulos translativos implicita uma distinção quanto aos títulos constitutivos; é que os translativos são também constitutivos (ou melhor se chamariam “institutivos”), mas em que não se dá uma aquisição ex novo como se reconheceria nos constitutivos em acepção própria. Assim, p.ex., na avulsão e na aluvião −abdicando-se aqui da controvérsia acerca de serem causas apenas declarativas− ter-se-ia um título, de toda a sorte, relativo a uma novidade jurídica; a aquisição é originária, seja ou não constitutiva, mas translatícia não é, porque não se funda na existência de um direito anterior, nem é o mesmo direito que estava na esfera de anterior titular. Outros exemplos de títulos puramente constitutivos (institutivos) são os referentes à instituição de direitos reais menores (servidão, hipoteca, et reliqua), porque o objeto da “constituição” é menos amplo do que o da propriedade de que se destaca.
Extintivos, ao fim, são os que exaurem um direito e reclamam, quanto à situação real imobiliária, averbação de seu encerramento (ou, impropriamente, seu «cancelamento») no registro de imóveis.
