Sobre o registro dos loteamentos urbanos e rurais (quarta parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 259)

                     Des. Ricardo Dip

 

  1. O art. 18 da Lei 6.766/1979 impõe que, para o registro especial do parcelamento, apresentem-se certidões negativas “de ações reais referentes ao imóvel, pelo período de 10 (dez) anos” (alínea b do inc. III) e “de ações penais com respeito ao crime contra o patrimônio e contra a Administração Pública” (letra c do mesmo inc. III). Além dessas certidões, também exige o mesmo dispositivo a exibição de outras −sem que reclamem negativas− “de ações pessoais relativas ao loteador, pelo período de 10 (dez) anos” (alínea b do inc. IV) e “de ações penais contra o loteador, pelo período de 10 (dez) anos” (letra d do inc. IV).
  2. 933. As ações, por sua origem, dividem-se segundo seu objeto seja (i) o estado das pessoas (ações prejudiciais), (ii) uma coisa imediatamente (ações reais) e (iii) uma obrigação pessoal (ações pessoais).

          Designam-se, pois, ações reais, “as que nascem do jus in re, e competem a quem tal jus tem contra o réu, que não o quer reconhecer, possuindo a cousa sobre que recai o direito real”  (José Homem Corrêa Telles, Doutrina das Acções, 1880, p. 4), conceito a que se afeiçoa a consistente doutrina de João Mendes de Almeida Júnior, reiterando que essas ações reais são “as que nascem do jus in re”, ou seja, ações que têm por objeto uma coisa ou um direito real sobre ela, e, prossegue o autor, sendo quatro as espécies do ius in re −domínio, servidão, herança e penhor−, são ações reais, inter plures, a reivindicatória (inclusa a de bens dotais), a publiciana (em que se pretende a posse com amparo em propriedade de fato adquirida por prescrição ainda não declarada), a pauliana, a confessória e a negatória de servidão, a de petição de herança, a de querela de testamento inoficioso e de testamento nulo, a de suplemento de legítimas e a revocatória de alienação em fraude das legítimas, a de querela de doação inoficiosa, a de partilha, a de pedido de colação, de legados e de fideicomissos, a de sonegados, a pignoratícia, a hipotecária, a anticrética e a de preferência (cf. Direito judiciário brasileiro,  1960, p. 108 et sqq.. A esse rol, caberia ainda acrescentar as ações de usucapião, de divisão e alienação de coisa comum, de desapropriação (vidē Vicente Celeste Amadei e Vicente de Abreu Amadei, o.c., p. 292).

              As certidões referentes a ações reais sobre o imóvel objeto do parcelamento devem ser expedidas pelos ofícios dos distribuidores cíveis das justiças estadual e federal, com atribuição correspondente à comarca da situação do imóvel (assim já a referência de João Mendes a que, em regra, as ações reais são propostas “no foro da situação da coisa” −p.108).

          A Lei 6.766 prevê que essas certidões abranjam um período decenal, e, como ficou dito, sejam negativas, de modo que, sendo o imóvel objeto de litígio judicial −o que se indicaria nas certidões positivas de ações reais− impede-se o registro especial do parcelamento.

          934. Também negativas, para admitir-se esse registro especial, devem ser as certidões de ações penais concernentes a crime contra o patrimônio e contra a administração pública, certidões que devem extrair-se tanto em nome do loteador, quanto em nome de seu eventual cônjuge.

              Saliente-se a restrição dos delitos que inibem o registro pretendido. Trata-se somente de crimes contra o patrimônio e contra a administração pública, ilícitos esses que se tipificam, sobretudo, no Código penal (arts. 155 et sqq.: furto, roubo, extorsão, usurpação, dano, apropriação indébita, estelionato e outras fraudes, receptação; arts. 312 et sqq.: peculato, prevaricação, corrupção, advocacia administrativa, condescendência criminosa, violência arbitrária, abandono de função, etc.), sem excluir, todavia, a caracterização de símiles classes delituosas em legislação extravagante do Código penal.

              Por igual, essas certidões de demandas penais devem expedir-se pelas justiças estadual e federal, avistando-se, a propósito, a diversidade das competências correspondentes, tal se verifica do disposto no art. 69 do Código brasileiro de processo penal em vigor, que estabelece, ao lado da competência jurisdicional mais comum (art. 70), que é  a (i) do lugar da infração, outras possíveis competências, quais as (ii) do domicílio ou residência do réu (art. 72), (iii) da natureza da infração, (iv) da distribuição, (v) da conexão ou continência, (vi) da prevenção (art. 71) e (vii) da prerrogativa de função (arts. 84 a 87).

              935. Denominam-se ações pessoais “as que nascem da obrigação de dar, fazer, ou não fazer, alguma cousa” (Corrêa Telles, c., p. 6), seja que essa obrigação derive de contrato, quase-contrato, delito, quase-delito, preceito de lei, ou até de equidade, “nos casos em que esta obriga perfeitamente”. Nesse âmbito encontra-se também a ação in rem scriptæ (que alguma doutrina designa pessoal-real), ação que, “nascendo de obrigação pessoal do Réu, tem assento na coisa”, de sorte que pode propor-se contra o devedor ou contra um terceiro possuidor (João Mendes, o.c., p. 108).

              Controverso −e tem isto grande relevo para admitir-se ou não o registro especial do parcelamento− é o caráter da ação possessória: com efeito, se essa ação entender-se dotada de natureza real, a certidão que lhe diga respeito deve ser negativa para permitir-se o referido registro especial.

              Apontando já o fato de alguns julgados sustentarem a natureza real das ações possessórias, Astolpho Rezende, com invocação, entre os autores brasileiros, da doutrina de Clóvis Beviláqua, Lafayette, João Mendes Júnior e Corrêa Telles, firmava-se em que essas ações não podem dizer-se reais, porque “reais são apenas as ações que nascem do jus in re, do direito real (domínio ou direito real sobre a coisa alheia)” (A posse e sua protecção, 1937, vol. 2, p. 24). Tendeu, porém, a doutrina brasileira posterior a considerar a posse um direito −e direito real (cf., brevitatis causa, Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, 1978, vol. IV, p. 28-31; Orlando Gomes, Direitos reais, 1978, p. 38-39; Arnaldo Rizzardo, Direito das coisas, 2016, p. 28)−, ainda que não falte a perseverança de algum entendimento na posição contrária (p.ex., Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil brasileiro, 2015, p. 74-76).

              Parece interessante referir que, comentando o texto em que Corrêa Telles relacionara as ações possessórias em primeiro lugar entre as ações pessoais (p. 178 e 181 et sqq.), a isso Teixeira de Freitas objetou com uma distinção: ao passo em que Corrêa Telles admitia amplamente o caráter pessoal das possessórias, abrangendo a aquisição, a recuperação e a conservação da posse, Teixeira de Freitas, por sua vez, apenas reconheceu essa natureza pessoal quando se tratasse de recuperar e conservar a possessão, limitando essa natureza, quanto à aquisição possessória, aos casos em que ela supusesse um delito. De maneira que Teixeira de Freitas excluía o caráter pessoal das possessórias nos casos em que houvesse lícito aquisição de posse: p.ex., aquisição relativa a herança ou referente a bens doados ou comprados, em que indicava a natureza real das ações. Por sua vez, João Mendes de Almeida Júnior, afeiçoando-se à tese de que, em geral, as ações possessórias são pessoais, incluindo entre elas −ações de força nova, de força velha, de manutenção de posse, de embargo de obra nova, demolitória, de caução de dano infecto e de reintegração− também a ação de imissão, pareceu, no entanto, admitir, em algum abono do entendimento de Teixeira de Freitas, que o interdito adispicendæ possessionis, voltado à aquisição da posse, tornara-se inútil no direito brasileiro.

              Controvérsia à parte −e mais prudente parece ser aos registradores considerarem a possessória como ação real−, observaram Vicente Celeste Amadei e Vicente de Abreu Amadei que, positivas as certidões de ações pessoais, devem ser esclarecidas por certidões complementares (p. 293), com que se permita mais adequado juízo de qualificação pelos oficiais do registro imobiliário, tendo em linha de conta de que essas certidões positivas não são obstáculo absoluto ao registro especial do parcelamento. Assinale-se que a clave da qualificação registral, neste quadro, está em aferir o risco de prejuízo aos adquirentes de lotes.