Diante da repercussão de casos de autodeclaração indígena por parte de cidadãos que não são reconhecidos pelas comunidades às quais afirmam pertencer, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) vem a público explicar os principais aspectos acerca do Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (RANI).
Previsto na Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio), o RANI é um registro administrativo legalmente válido para a posterior emissão do registro civil do indígena nos cartórios públicos. Embora a norma legal seja de 1973, o RANI foi regulamentado somente no ano de 2002 pela Portaria nº 03/2002, de acordo com a qual a finalidade expressa do registro é a de garantir à Funai o controle estatístico da população indígena brasileira. Ou seja, o RANI, por si só, não é uma prova cabal de identificação étnica daquela pessoa que se autodeclara indígena.
Apesar disso, a Lei nº 6.001/73 estabelece um critério objetivo que justifica a emissão do RANI. Em seu artigo 15, a norma legal determina que "os registros administrativos de nascimento e óbito deverão ser promovidos antes dos registros públicos". Essa disposição foi revalidada em 2012 pela Resolução Conjunta nº 03 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Em seu artigo 4º, a resolução ratifica a validade do RANI como um mecanismo de acessibilidade para fins de obtenção do Registro Civil de Nascimento.
Essas normativas refletem a intenção do poder público em facilitar o acesso da população indígena ao Registro Civil de Nascimento emitido pelos cartórios. Embora o RANI não seja um documento civil – pois se trata de um ato discricionário –, é incontestável sua relevância social para os povos indígenas por viabilizar a acessibilidade a direitos sociais e à cidadania.
Atualização do RANI
Em 2015, a Portaria n° 191/PRES-FUNAI instituiu um Grupo de Trabalho (GT) "com o objetivo de avaliar as normativas vigentes acerca do Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI), em especial a Portaria n° 003/PRES, de 14 de janeiro de 2002, e propor nova regulamentação para o instituto (...), atualizando-o à luz da legislação indigenista em vigor".
Após encerrar seus trabalhos, o GT emitiu a seguinte conclusão por meio da Nota Técnica n° 02/COPS/CGPDS/DPDS/FUNAI-MJ, de 29 de dezembro de 2015: "pelos fatos apresentados, o Grupo de Trabalho concluiu que, observadas regras e procedimentos específicos, e levando em consideração o acesso ao Registro Civil de Nascimento, o RANI continuará a ser emitido. Porém, a emissão desse registro vai ocorrer com a finalidade de gerar dados voltados ao planejamento, coordenação, monitoramento e execução de ações indigenistas pela Funai".
Retrocesso
Todavia, em 2021, sem consultar a área técnica competente, a gestão anterior da Fundação buscou implantar um "novo fluxo" de emissão de RANI. Por meio do Ofício nº 1094/2021/PRES/FUNAI de 16 de julho de 2021, a antiga gestão buscou centralizar as emissões de RANI na Sede da Fundação em Brasília (DF), determinando o envio de todos os livros de RANI das unidades regionais da Funai para a sua Sede. Essa determinação gerou vários problemas administrativos e desassistência aos indígenas que realmente precisavam do RANI como meio subsidiário para acesso ao Registro Civil de Nascimento.
Recomeço
A partir de 2023, a atual gestão da Funai tem buscado corrigir os problemas decorrentes das decisões anteriores. O processo de revisão dos atos envolve uma série de providências como um novo ciclo de orientação e capacitação técnica nas unidades regionais; a revisão dos atos administrativos da gestão anterior; a edição de orientações aos indígenas, órgãos e entidades acerca do RANI; e, principalmente, a retomada do processo que trata da revisão e atualização da Portaria nº 03/2002.
Em suma, a emissão de RANI tem sido normalizada de acordo com as capacidades técnicas de cada unidade regional do órgão indigenista. É importante ressaltar que o RANI só pode ser emitido para os casos elegíveis, ou seja, para pessoas que não possuem Registro Civil de Nascimento, e que apresentem as informações básicas necessárias ao preenchimento do registro.
Reconhecimento étnico
Geralmente o RANI é relacionado a alguma exigência de reconhecimento étnico – o que não é sua função. De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, não há órgão, entidade ou instituição por si próprio que tenha o poder de atestar, declarar, certificar, validar, confirmar ou ratificar a origem de qualquer cidadão enquanto indígena.
Tal entendimento é convalidado pelo Estatuto do Índio e pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada integralmente no Brasil em 2004, conforme o Decreto nº 5.051/2004; e consolidada por meio do Decreto nº 10.088/2019 de 05 de novembro de 2019.
Como bem define o Estatuto em seu artigo 3º, "para os efeitos de lei, ficam estabelecidas as definições a seguir discriminadas: índio ou silvícola é todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional".
Já o Decreto nº 10.088/2019, que consolidou a Convenção nº 169 da OIT, estabelece o seguinte no seu artigo 1º: "a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção".
Autonomia indígenaPor fim, ressalta-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 determinou a promoção da autonomia e do respeito às formas de organização social e cultural dos povos originários, superando o tratamento tutelar estatal sobre as comunidades indígenas. O avanço desse entendimento garante a utilização do critério da autodeclaração associado ao critério do reconhecimento pela comunidade de origem como forma de afirmação étnica. Portanto, a questão da autoidentidade ou autodeclaração passa a ser considerada instrumento que legitima a consciência do indivíduo como indígena.
Diante da diversidade dos povos indígenas no Brasil e a complexidade que permeia o tema, além do autorreconhecimento, entende-se necessário ouvir a comunidade à qual o indivíduo diz pertencer, de modo que não cabe à Funai atestar quem é indígena, pois tal ato contrariaria os direitos até então conquistados pelos povos originários.
Fonte: Assessoria de Comunicação / Funai