Des. Ricardo Dip
Alagoano nascido em Marechal Deodoro, mas jurista paranaense, Oscar Joseph de Plácido e Silva (1892-1963) é autor de um célebre Vocabulário jurídico, no qual se encontra o verbete «à fé», em que esclarece tratar-se de uma locução utilizada em documentos para exprimir que diz respeito a uma verdade a que se liga a honra da pessoa que a expressa à sua fé. É dizer: sob sua honra, palavra ou garantia.
É essa uma locução frequente na atividade dos tabeliães, que, para mais, são, por antonomásia, os portadores da fé pública.
Não é aqui a ocasião de tratar dos conceitos de fé, de fé pública e de fé notarial, mas de reportar o uso da expressão «à fé» ao campo da palavra honrada, já que, como fez ver de Plácido e Silva, declarar uma verdade «à sua fé» é declará-la «sob sua honra, sob sua palavra, ou sob sua garantia».
Houve um tempo (ou isto será sempre ao largo da história?), disse Lewis Mumford −in A cidade na história− que, «sustentada pela força militar, a palavra do rei era a lei». Mas pode haver também algum tempo −ainda que nisso possa acusar-se alguma utopia− em que, «sustentada por sua autoridade moral, a palavra do tabelião seja uma lei».
A clave dessa utopia −podemos designá-la também com o termo «esperança»− é a autoridade moral do tabelião. E, no uso das palavras, essa autoridade há de traduzir-se por «veracidade» (ou seja, verdade moral), e empolga uma série de atitudes que se destinam à busca da verdade lógica (isto é, adequação do intelecto à coisa conhecida).
Desde Aristóteles recebemos a lição de que as palavras escritas expressam as palavras orais, e que essas não significam diretamente as coisas, senão que elas exprimem as paixões das almas (vale dizer, as imagens imateriais presentes no intelecto) a partir da abstração das imagens sensíveis das coisas reais. Ou seja, as palavras escritas e as orais são signos dos conceitos, e estes, por sua vez, são representações intelectuais das coisas.
As palavras humanas são convencionais −embora não se possa negar a possibilidade de uma primitiva linguagem natural (assunto que interessa à teologia). Mas convencional não significa arbitrário. As palavras têm sua origem legitimada por uma relação conceptiva: elas representam coisas que afetaram a alma. Há nisso uma relação real e não uma fantasia arbitrária.
O mundo contemporâneo −bem mais do que em outros tempos da história− padece de uma propositada revolução na linguagem. Já, pode admitir-se isto, em parte, por força da mesma natureza humana decaída: Nicolás Gómez Dávila deixou dito que «certa cortesia intelectual nos faz preferir a palavra ambígua». No plano jurídico e político, é gráfica a referência ao termo «constituição», que Gomes Canotilho incluiu no plexo das «palavras viajantes», e até na esfera religiosa tenha-se em conta a observação de Romano Amerio no sentido de que a palavra «catequese» se degradou a um conhecimento econômico e social.
Sem negar o fato da dinâmica vocabular −p.ex., a palavra testamentum na Alta Idade média, abrangia vendas, permutas, etc., significando o mesmo que scriptura (cf. José Bono): A cada sete anos, no ano sabático dos hebreus, liam-se, na festa dos tabernáculos, as palavras da lei que Moisés entregara aos levitas para que eles a guardassem junto à Arca da Aliança. Não se tratava aí de uma tirania dos textos −«invejosa tirania que exercem os monumentos da pena (Stephen JAEGER, A inveja dos anjos)−, porque se tratava da palavra de Iahvé. Sem excluir, não menos, as dificuldades, quantas vezes, de bem definir as coisas: disse Umberto Eco ser mais fácil conceituar «enfiteuse» do que dar a noção do verbo «fazer», não se pode passar ao largo de que há intencionadas revoluções ideológicas com as manipulações da linguagem: um fenômeno facilmente identificável ocorreu com a gradual substituição dos vocábulos «mãe» e «pai» pelo genérico «genitores» (bem o aludiram Contreras e Poole).
Claro está que não se pode acolher o caos do despotismo terminológico: assim, no episódio de Alice no País das Maravilhas, sustentava Humpty Dumpty: «Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que eu quero que ela signifique… nem mais nem menos« (it means just what I choose it to mean –neither more nor less). O dever de veracidade −a verdade moral− impõe a cautela de respeitar o significado legítimo de cada palavra. «Há quinze anos −isto o disse Antoine Albalat− que luto com as palavras e que escrevo romances, novelas e artigos de crítica, feitos e refeitos, com encarniçamento».
A busca da palavra verdadeira é a honra dos que falam e escrevem. É, pois, também −e com maior relevo− a honra dos que escrevem com o peso enorme da fé pública.
Prosseguiremos.