Des. Ricardo Dip
Prosseguimos na consideração do profundo significado que se encontra na locução «à fé», de maneira destacada quando proferida pelo tabelião das notas.
Já ensinara Aristóteles, no Livro I do Peri hermeneias, serem as palavras escritas símbolos (ou signos) das orais, e as orais, signos das paixões da alma que, por sua vez, são imagens das coisas todas do mundo. Mas, para que serve a palavra? Responde o mesmo Aristóteles −no livro da Política− que a palavra existe para fazer manifesto o bem e o mal, o justo e o injusto, e que a comunidade dessas coisas constitui a família e o estado.
Bem se percebe a importância intelectual e moral da palavra, tanto na esfera individual, quanto na política e social.
Importância intelectual, porque ninguém pode designar o que não conhece («nullus potest significare id quod non cognoscit» −S.Tomás de Aquino, S.th., I, 13, 10, sed contra): bem observou Ernst Curtius que a deficiência da palavra interfere nos conceitos, e, ao revés, o domínio da palavra −disse-o Werner Jaeger− «significa a soberania do espírito».
Importância moral, porque, como se viu com a lição de Aristóteles, a razão de ser da palavra é exprimir o bem e o mal, o justo e o injusto; ou seja, a palavra expressa o discrimen entre o moral e o imoral: «A palavra não foi dada ao homem para enganar…» (Nicolás Gómez Dávila). Daí que, ao tempo da Cristandade, na Alta medieval, havia um grande respeito pela palavra escrita (assim o disse Charles Homer Haskins), e, num livro recente, o Cardeal Robert Sarah escreveu que «o valor do homem se mede por sua capacidade de ser fiel à sua palavra».
Como deixamos dito, as palavras têm alguma relação com a essência das coisas; sendo embora convencionais, não são arbitrárias. Graças a elas, como se lê nestes versos de Alanus ab Insulis (1128-1202), todas as criaturas fazem-se para nós livro, pintura e espelho (omnis mundi creatura/ quase liber, et pictura/ nobis est, et speculum). Se, todavia, abdicamos de com elas exprimir, discriminando-os, o bem e o mal, o justo e o injusto, sabemos-lhes o destino derradeiro, assim o referiu um autor português: servirão ao fim e somente para «empacotar bibelots numa mudança de casa».
É interessante considerar a relevância que as Escrituras concederam ao homem na instituição da linguagem: segundo o Livro do Gênesis (II, 19), não foi Yahvé, nem os anjos quem teve o privilégio de dar nomes às coisas. Devemos, pois, «ser preciosos na escolha das palavras» (Cardeal Sarah) e leais com seu proferimento.
Na obra máxima de S.Agostinho −De civitate Dei (I, 15, 1)− há um relato impressionante acerca da importância da palavra: o chefe do exército romano, Marco Atílio Régulo, fora capturado pelos púnicos e foi enviado em embaixada para convencer o Senado de Roma a trocar seus prisioneiros cartagineses pelos cativos romanos. Dera Régulo a palavra de que voltaria a Cartago tão logo terminasse sua embaixada. Em Roma, contudo, persuadiu o Senado a não aceitar proposta cartaginesa. Após isso, e a despeito dos conselhos dos senadores de Roma, Marco Régulo voltou a Cartago, porque entendeu não poder faltar à palavra empenhada. Suportou muito cruel tortura e assim morreu, passando à memória dos homens como o exemplo da reverência honrada à palavra.
Hoje, quando o mundo pós-moderno se inclina a uma ingênua ou intencional desconstrução da linguagem, esse exemplo de Marco Atílio Régulo vem a calhar para entendermos a importância de afirmar algo «à fé». Pois é que, ao desconstruir palavras, desconstroem-se conceitos, destroem-se instituições, destrói-se o próprio homem.