As gratuidades no âmbito das atividades extrajudiciais (parte 5)

Por mais que se deva reconhecer a dificuldade da compreensão e da interpretação do que já se chamou de binômio tensivo no modelo constitucional brasileiro das notas e dos registros, por padecer o texto do caput do art. 236 de nosso Código político de um dado circiterismo −que pode até conjecturar-se propositado, para permitir-se a aprovação do texto constitucional−, há algo que não comporta negativa: ser de natureza privada, como ficou dito, o exercício das funções notariais e registrais.

Isto sugere logo a resposta a uma questão: qual o tipo de liame −ou seja, sob o mero aspecto formal− que deve relacionar, de uma parte, o poder político (o estado), e, de outra parte, o notário e o registrador, cada um destes na condição constitucional de agens particularis.

Ao lado de uma categoria preceptiva de delegação constitucional em abstrato (este é o quadro do referido art. 236) e de uma delegação legal in concreto (p.ex., a que, abstraída aqui sua aparente invalidade em confronto com a normativa constitucional, atribuiu competências registrais ao Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis −ONR, a Lei 14.465, de 11-7-2017), deve ainda referir-se aqui a delegação administrativa, que, com fundamento em norma legal (lato sensu, porque pode, e este é o caso, abranger a norma constitucional), consuma-se ou por ato administrativo ou mediante contrato administrativo (brevitatis studio, cf. Pedro Gonçalves, o.c., p. 1.028-9). Devem distinguir-se dois modos dessa delegação administrativa: o primeiro deixa à discricionariedade da própria administração −é dizer, a seu juízo de oportunidade e de conveniência− a delegação de competências; outro, e este é o modelo adotado pela Constituição brasileira de 1988, é o da delegação administrativa compulsória (daí que, p.ex., vulnere o preceito constitucional, a tardança em delegar as atividades das notas e dos registros nos agentes particulares, o que inclui o fato da demora injustificada em nomear, com a condição de titulares, concursantes regularmente aprovados em certames públicos).

Pois bem, em resumo, a delegação constitucional das notas e dos registros (caput do art. 236 da Constituição) carece de um meio administrativo de concretização, meio que é, entre nós, de atuação vinculada para executar o preceito da norma constitucional. Cabe, então, retornar à questão já enunciada: se a delegação, no Brasil, das atividades notariais e registrais em agentes particulares deve concretizar-se mediante ato administrativo −ou seja, ato unilateral, de requisição, de imposição compulsória− ou por meio de contrato de caráter administrativo.

Cuidando-se da gestão indireta das atividades públicas (tal ocorre com os chamados serviços notariais e registrais), três são as clássicas formas jurídicas de delegação em agentes privados: (i) a autorização; (ii) a permissão e (iii) a concessão. A primeira, a autorização, suscetível de adotar-se por ato administrativo, corresponde a um quadro de precariedade e de situação emergencial, de modo que não guarda simetria com o perfil das notas e dos registros públicos, cujas atividades reclamam prestação continuada. A segunda, a permissão, e a terceira, a concessão, ambas exigem, em consonância com a normativa constitucional, o regime administrativo-contratual (cf. inc. I do art. 175 da Constituição brasileira de 1988).

A gestão atribuída aos agentes particulares das notas e dos registros públicos corresponde à denominada terceira geração dos contratos públicos, que tem como características a independência jurídica desses agentes −o que está longe de significar falta de fiscalização e controle pelo poder público− e a responsabilidade do próprio gestor pelos atos de seu ofício.

As cláusulas incidentes nesses ajustes podem ser estabelecidas tanto em lei, quanto diretamente nos pactos, e ainda neles persista o critério da tangibilidade (ou seja, a cláusula ius variandi que favorece o interesse público), isto não vai ao ponto de admitir-se a plena e imotivada liberdade de a administração esquivar-se discricionariamente dos vínculos contratuais; lê-se, a propósito, em André de Laubadère, acerca do poder de modificação unilateral desses contratos:  "Il apparaît d'abord qu'il ne doit pas s'agir d'un pouvoir discrétionnaire, car un pouvoir discrétionnaire impliquerait la liberté pure et simple pour l'administration de se soustraire à ses engagements contractuels en y apportant des changements" (Traité théorique et practique des contrats administratifs, ed. Lgdj, Paris, 1996, tomo II, p. 336).

Para o caso brasileiro, veja-se que a possibilidade de rescisão desse contrato −com o nome perda da delegação− vem indicada, de modo limitado (pode dizer-se vinculado) e com processos estritos, no art. 35 da Lei 8.935/1994 (de 18-11), de sorte que estas restrições bem se harmonizam com o atributo de independência jurídica dos notários e registradores (independência que é da natureza dessas atividades e, além disto, objeto de previsão legal: arts. 3º e 28 da Lei 8.935).

Prosseguiremos.