Bem de família (oitava parte)

           Dados os três primeiros passos para a inscrição institutiva do bem de família, deve o registrador proceder à publicação, em forma de edital, do “resumo da escritura” apresentada, indicando o nome, a naturalidade e a profissão do instituidor, assim como a data do instrumento notarial e nome do tabelião que o elaborou, bem como a situação e características do prédio objeto (inc. I do art. 262 da Lei n. 6.015, de 1973).

          Tudo aparentemente muito simples. Mas calha que, no itinerário desses passos inaugurais, existem, todavia, interessantes controvérsias quanto às exigências legais (i) da moradia dos beneficiários, por ao menos dois anos, no imóvel objeto da pretendida instituição, (ii) da prova da solvência do mesmo instituidor e (iii) da limitação do bem afetado ao que corresponda a um terço do patrimônio líquido ao tempo da instituição (art. 1.712 do Cód.civ.).

          Consideremos agora o primeiro desses temas.

          Lê-se no art. 19 do Decreto-lei 3.200/1941 (de 19-4), com o texto do art. 1º da Lei 6.742/1979 (de 17-12): “não há limite de valor para o bem de família desde que o imóvel seja residência dos interessados por mais de dois anos”.

          Vigora ou não esse preceito? Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho diz que “parte da doutrina considera que cabe ao registrador examinar se foi observado o requisito temporal de dois anos de moradia no imóvel. Doutrina majoritária, contudo, não acolhe essa orientação, uma vez que o Código Civil vigente não contempla esse requisito”. Entendendo vigente a prescrição, sustenta Ari Pires Neto: “permanece a exigência legal de que o instituidor resida no imóvel objeto da instituição há pelo menos dois anos, nos termos do art. 19 do Decreto-lei n. 3.200/1941, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 6.742/1979, não revogado pelo novo estatuto, sendo requisito necessário, uma vez que o descumprimento dessa ordem legal poderá ser motivo de reclamação de eventual interessado e burla ao instituto”. Não diversamente pensam Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari, e, por igual, Ademar Fioranelli, os três apontando um julgado da 1ª Vara de Registros Públicos da Comarca de São Paulo (Processo 000.01.069194-4), decisão esta, contudo, proferida antes da vigência do Código civil de 2002.

          Vejamos com vagar. O art. 19 do Decreto-lei 3.200 previra, originariamente, que não se instituiria em bem de família “imóvel de valor superior a cem contos de réis”; esse dispositivo modificou-se com a Lei 2.514/1955 (de 27-6), vedando-se a instituição em prédio com “valor superior a Cr$1.000.000,00 (um milhão de cruzeiros)”; mais tarde, com a Lei 5.653/1971 (de 27-4), limitou-se a instituição em imóvel cujo valor não superasse “500 (quinhentas) vezes o maior salário mínimo vigente no País”. Veio então a Lei 6.742, de 1979, e com ela se estabeleceu não haver limite de valor para o bem de família, contanto que o imóvel fosse “residência dos interessados por mais de dois anos” (art. 1º).  Vale dizer, com a lição de Paulo Nader, que a Lei 6.742 substituiu “o limite máximo [do valor do prédio] pela exigência de morada no imóvel, pelos interessados, por mais de dois anos”, firmando-se a orientação de que esse prazo de residência no prédio configuraria o suposto ordinário para toda instituição de bem de família.

          Eis, entretanto, que surge o Código civil de 2002,  restabelecendo o critério de valoração máxima do imóvel objeto, e ainda que o Código não tenha previsto valor fixo, prescreveu, porém, limite de valoração proporcional: “Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial” (art. 1711).

          Sendo assim, mais não vigora a indiferença do valor do prédio, que, como visto, já se substituíra pela da residência ao menos bienal no imóvel. O Código civil retornou à ideia de limite valorativo para a instituição do bem de família. A lei posterior ꟷneste passo, o Código civil brasileiro de 2002ꟷ “revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior” (§ 1º do art. 2º do Decreto-lei 4.657, 4-9-1942), pondo-se à vista a incompatibilidade normativa entre a antiga indiferença com o valor do prédio e a previsão de seu valor máximo indicada no Código. Se a dispensa de consideração valor, na norma antecedente, qual a da Lei n. 6.472/1979, atrelara-se ao requisito de moradia por ao menos um biênio no imóvel, já a correspondência substitutiva perdeu sua razão de ser com o Código civil: não há mais isenção de valor a substituir-se pela de residência; não se vê motivo, pois, para manter-se uma função substituinte quando não há mais o que substituir.

          Conclui-se, a meu ver, que as sucessivas textualizações do art. 19 do Decreto-lei 3.200 põem em relevo a clave fundamental do valor do prédio, não a de moradia por dado período mínimo. Não cabe mais exigir, parece-me, que os beneficiários residam no prédio por ao menos dois anos.