Bem de família (primeira parte)

Entende-se por bem de família a afetação de um bem −ordinariamente um bem imóvel− às necessidades da vida familiar, excluindo-se esse bem das vicissitudes econômicas que poderiam acarretar sua sujeição ao adimplemento de dívidas.

          De maneira muitíssimo frequente, o bem de família recai sobre coisa imóvel, porque a moradia ocupa o lugar central na concepção desse instituto (a este propósito, podem invocar-se lições, por todos, de Ademar Fioranelli, Rosa Nery e Ulysses da Silva). Isto, contudo, não inibe que, sem negar a perseverança do núcleo de sustentação familiar −a ideia de habitação da família−, possa estender-se essa afetação jurídica a outros bens, assim os acessórios e os valores mobiliários (cf. o art. 1.712 do Código civil brasileiro), com a condição de que esses bens estejam em ato. Ou seja: não se pode constituir bem de família em uma potência de moradia; por isso, Walter Ceneviva, seguido da conformidade de Ademar Fioranelli, ensina ser incabível a instituição de bem de família sobre terra nua.

          Mas esse entendimento não abarca as moradias comuns da anti-city (expressão de Lewis Mumford), o que corresponde  à maré periférica −suburbana− que se formou no entorno das metrópoles norte-americanas. Anti-city ou antipólis porque consiste na recusa do sentido do urbano, com a adoção da instabilidade, tal, p.ex., a instalação de barracas, de tendas, de motorhomes etc.  Ainda que se possa, com esse fenômeno, disputar sobre a passagem da potência ao ato edilício (segundo os padrões urbanos clássicos herdados da polis grega), parece que caiba já reconhecer, em contrário, um ato de moradia (ou, noutras palavras, a moradia em ato), e, por isso, não aparenta irrazoável admitir que, presentes essas circunstâncias, seja possível a instituição de bem de família sobre barracas, tendas, veículos residenciais motorizados, e, talvez com maioria de razão, não menos possível admiti-lo para a hipótese das chamadas cidades-breves −a saber, sistemas construtivos que demandam de dois a seis meses para a edificação de casas, em madeira, sem vigas, nem pilares (sistema de balloon frame ou balloon framing −cf. Carlos García Vázquez, El desvanecimiento de lo urbano en el Cinturón del Sol).

          Questão interessante −mas não isenta de muitas inquietudes e problemas−, é a que envolve o tema do ciberespaço ou, de modo mais particular, o das cibercidades, que correspondem ao modelo ficcional descrito, parece que com primazia, por Willian Gibson, em sua novela Neuromante (1984): cidade compostas por dados tridimensionais que são codificados em formas arquitetônicas. Ainda que, atualmente, as cibercidades continuem a ser cidades de ficção −mas já com algumas de suas possíveis etapas em implantação (assim, as videoconferências, a telemedicina, o comércio eletrônico)−, o fato é que não se pode sem mais excluir a possibilidade de, no futuro, surgir uma cidade construída de modo virtual, de sorte que não se enraíze em um lugar geográfico e seja habitada por cibernautas −híbridos transhumanos  habitantes da city of bits (título de um livro de William Mitchel, publicado em 1995). Tal o fez ver García Vázquez, em Ciudad hojaldre (2008), o cibernauta, para bem ou para mal, é a fusão do corpo humano com a arquitetura, e, pois, haverá de sindicar-se como será seu habitat, como será sua família (se é que ela ainda persistirá neste quadro de coisas) e, é o que nos interessa neste capítulo, se caberá pensar em um bem de família e sobre qual coisa haverá ele de recair.