Cancelamento (segunda parte)

A Lei brasileira 6.015/1973 faz quase três dezenas de menções ao cancelamento registral (em acepção genérica), cancelamento quer referível diretamente a inscrições, quer à exaustão dos direitos objeto de alguma inscrição: p.ex., no registro civil das pessoas naturais, prevê-se, segundo o § 5º do art. 32 da citada Lei 6.015, o cancelamento do registro provisório, efetuado no Livro E, do termo de nascimento do filho de brasileiro ou brasileira, nascido no estrangeiro, supostas as demais condições indicadas no § 2º do art. 32 da mesma Lei−, e não diversamente permite-se, expressamente, nos termos dos §§ 5º e 6º do art. 57, o cancelamento da adição relativa a mudança posterior de nome; com a legitimação adotiva, diz a lei que “será cancelado o assento de nascimento original do menor” (art. 96); há cancelamentos reportados ao registro de títulos e documentos (arts. 164 a 166); e muitos previstos para a esfera do registro de imóveis (v.g., art. 167, II, itens 2º e 36; art. 233, arts. 246 et sqq.), incluída a hipótese do “cancelamento de hipoteca” (arts. 251 e 267).

Tem-se, pois, que nem sempre o termo «cancelamento» significa, no território registral, inutilização ou retificação negativa radical com privação de toda eficácia tabular. Algumas vezes, diversamente, a despeito da adoção, na lei, do vocábulo «cancelamento», o objetivo é de mero «encerramento» de uma inscrição imobiliária, sem, pois, a finalidade de privar-se de todo efeito registral o assento destinatário da medida. Vem a propósito observar que o art. 235-A, incluído pela Lei 13.465/2017 na Lei 6.015, instituindo o código nacional de matrícula (CNM) −correspondendo “à numeração única de matrículas imobiliárias em âmbito nacional”−, distinguiu as hipóteses de cancelamento e de encerramento registrais, como se lê em seu § 1º: “O CNM referente a matrícula encerrada ou cancelada não poderá ser reutilizado”.   

Suponha-se que, por erro, lance-se em dada matrícula um título de comodato ou de mera posse; é curial que, à vista da irregistrabilidade desses títulos segundo a lei brasileira vigente, caiba cancelar-lhes as inscrições, vale dizer, retificar negativamente o registro para excluir todo efeito registral relativo a essas inscrições. Diversamente, cogite-se de uma série de segregações imobiliárias levadas à matrícula de um dado imóvel, a ponto de que não remanesça área alguma nessa matrícula; o caso levará a que esta se encerre, ou seja, declare-se seu exaurimento, sem, entretanto, privá-la de eficácia. Tenha-se em conta que duas das três hipóteses previstas no art. 233 da Lei 6.015 se referem, na verdade, à categoria do encerramento registral, embora o texto legal mencione o cancelamento: “A matrícula será cancelada:  I- (…); II - quando em virtude de alienação parciais, o imóvel for inteiramente transferido a outros proprietários; III - pela fusão, nos termos do artigo seguinte”.

Em palavras de Roca Sastre, “los asientos del Registro son entes que nacen, viven y mueren en los libros hipotecarios. Al Derecho inmobiliario registral corresponde regular este proceso biológico de los asientos y por tanto los problemas relativos a su extinción”. Mas essa extinção pode resultar de várias causas e não só de uma inutilização radical, que é a própria do cancelamento em acepção estrita. 

Há um exemplo gráfico que parece pôr em bastante evidência a discriminação entre, de um lado, o cancelamento, e, de outro, o encerramento. Quando se transfere o domínio de um imóvel, o registro anterior −isto é, o registro da propriedade do alienante− suporta uma sorte de extinção (quer dizer, deixa de ser eficaz em ato, deixa de surtir efeito atual), e, por essa razão, esse registro encerra-se por exaustão jurídica; todavia, não se pode dizer que ele se cancela −ou seja, que se priva radicalmente de toda eficácia registral−, porque isto destruiria a cadeia da consecutividade tabular.