Seguindo na pequena trilha pela qual nos temos aventurado em considerar as retificações ou purgações de nossas potências −já dissemos algo sobre as dos sentidos internos da imaginação e da memória−, tratemos agora de referir, de modo conciso, o tema da retificação da potência intelectual.
Rememoremos que o entendimento humano −é dizer o mesmo: sua inteligência, sua razão− é uma potência que emana diretamente da essência da alma do homem. É a potência que mais próxima está dessa essência, a única que dela emana imediatamente.
Pode conceder-se, à partida, que o homem possua, por sua essência, a capacidade e a inclinação de buscar seu próprio bem conatural −e, até mesmo, é da experiência vital, que cada homem, quanto mais se esforça em realizar o bem, mais se capacita a realizá-lo: “cuando el hombre obra bien −disse Colom Costa−, no solo es más bueno, sino que, por lo mismo, aumenta su aptitud y tendencia para obrar mejor”. Todavia, a despeito dessa tendência dos homens em buscarem o bem que os faça felizes, a realidade convence-nos de maneira evidente que os mesmos homens possuem, em contraste, uma proclividade para o erro e para o mal (pronitas ad malum), algo que contaminou e feriu sua própria natureza.
Desta universal realidade humana resulta simples a conclusão de que, pretendendo os homens atingir sua felicidade (ou seja, o bem de sua natureza −e calha agregar uma referência teológica: o bem sobrenatural), é preciso que discipline e corrija as desordens que assediam seu intelecto.
Embora a inteligência humana seja capaz de conhecer a verdade, não se pode recusar, em contrapartida, que o entendimento humano possui uma chaga, uma ferida, que se designa vulnus ignorantiæ, de maneira tal que todos temos grave dificuldade em alcançar as verdades, e, entre elas, sobretudo, as supremas. Um autor contemporâneo observou, com razão, que todos temos grande curiosidade pelas coisas transitórias, ao passo em que mostramos negligência e preguiça na investigação de nossos fins últimos e dos meios que nos podem conduzir a eles.
Curiosidade das coisas transitórias… é frequente não considerarmos o conjunto da vida, preferindo dedicar nossa atenção, com uma solicitude esquisita, a coisas inúteis que nos subtraem o tempo das questões que verdadeiramente deveriam interessar-nos. Divagamos, hoje, por uma série de conhecimentos inócuos ou pouco menos que isto (não parecerá demasiado ilustrar o ponto com a avulsão de notícias da rede informática), conhecimentos que amontoamos sem sequer, na maior parte das vezes, ter a possibilidade de conexioná-los, atuando apenas ao modo com que Garrigou-Lagrange chamou de “mania de colecionador”; enfim, uma “insensata curiosidade intelectual” (S. Juan de la Cruz), que, atentando contra a virtude da estudiosidade, não apenas se lança a um vão conhecimento, mas fomenta ainda a preguiça intelectual acerca das coisas que devemos estudar.
Mais grave do que essa desordenada curiosidade intelectual é ainda a soberba do espírito, que consiste em depositar uma confiança excessiva em nossa própria inteligência, defeito que, se não atalhado e corrigido a tempo, pode conduzir-nos à cegueira do espírito (cæcitas mentis).
Como retificar ou purificar nossa inteligência?
Primeiro passo: esforcemo-nos em disciplinar nossa tendência à curiosidade, fomentando, em contrário, a virtude da estudiosidade. É certo que a felicidade humana está no conhecimento da verdade −bonum hominis consistit in cognitione veri (S.th., II, 167). Mas esse conhecimento, apto a fazer o homem feliz, não é o de qualquer verdade (cuislibet veri), de modo que a desordem no conhecimento aparta do fim da summa felicitas.
Desta forma, é necessário considerar o modo com que o conhecimento humano deve regular-se. E é exatamente a noção de modo que emerge prontamente à raiz da virtude da modéstia. Ora bem, a modéstia é uma das partes potenciais do hábito cardeal da temperança: de fato, ao passo em que a temperança modera os movimentos mais difíceis de refrear, a modéstia tempera os mais fáceis. Entre os casos da modéstia, um há que diz respeito ao movimento de desejo de conhecimento. Este caso é o da virtude da estudiosidade.
Ser a estudiosidade uma parte da modéstia e, pois, mais remotamente, uma parte virtual da temperança, não impede a influência ordenadora ditada pela virtude da prudência, que confere perfeição a todas as virtudes morais, incluídas a temperança e a modéstia.
Dois vícios extremam-se para lesar a natural inclinação humana para o conhecimento: um, por defeito, é a negligência, em que se peca por abandono do conhecimento a que estamos obrigados.
Outro, a curiosidade, em que se peca por excesso, por superfluidez, por desordenação.
Com efeito, se é reto afirmar que o conhecimento da verdade, por si próprio −per se loquendo− é um bem, pode, entretanto, não o ser, circunstancialmente −per accidens−, sobretudo:
(i) quando, com o estudo, está-se em busca de ser soberbo com o conhecimento (o “inchaço da ciência adquirida”);
(ii) quando se almeja adquirir a ciência para o fim de agir mal (ad pecandum);
(iii) quando se desordenam o desejo e o esforço de adquirir a verdade: assim, p.ex., dedicando-se alguém a coisas menos úteis, em desfavor dos estudos necessários; ou a aprender com um mestre a quem não seja lícito ouvir (porque, v.g., afana-se em prognosticar o futuro por meio de curiosidades supersticiosas); ou a conhecer a verdade das criaturas sem ordenar o conhecimento ao fim último (que é o conhecimento de Deus); ou a empolgar-se em conhecer verdades que superam a capacidade do entendimento humano (S.th., II-II, 166, 1).
O “compulsivo leitor de bulas”, o “ávido frequentador dos livros que estão na moda”, o “ledor de pensadores supérfluos”, o adicto da rede informática, padecem do vício da curiosidade, porque despendem o tempo do conhecimento necessário e ainda se arriscam à contaminação por maus pensadores e notícias inúteis.
Ora, quais os critérios que nos devem orientar para saber quais conhecimentos buscar? Entre outros critérios, avultam os (i) da realidade, (ii) da experiência e (iii) da tradição.
Pelo princípio da realidade, havemos de buscar conhecimentos em livros e pensadores que se ajustam à objetividade, a “tomar las cosas tal como son, sin interferencias subjetivas o ideológicas” (Graciela Hernández de Lamas).
Pelo princípio da experiência, devemos considerar nosso contacto vital com a realidade das coisas, e, pois, admitir a experiência social consolidada ao largo da história, com o caráter de ponto de partida, os tópicos (tópoi) e os lugares comuns (loci) do raciocínio e da argumentação.
Pelo princípio da tradição, enfim, acolhemos, ainda como ponto inicial, o que nos legaram concretamente nossos Maiores.
Prosseguiremos.