LOTEAMENTO: conflito entre restrições convencionais levadas ao registro e norma urbanística posterior

(Diagnóstico da hipótese e status quæstionis)

Des. Ricardo Dip

Nesta explanação da série "Claves notariais e registrais", que tem o apoio da Academia Paranaense de Direito Notarial e Registral e da Anoreg do Estado do Paraná, trataremos da diagnose de um problema que pode afligir os parcelamentos do solo, lançando-se aqui mera indicação de suas possíveis soluções.

Na exposição da semana que vem, trataremos de referir nossa opinião acerca do assunto.

A hipótese: titular de domínio de lotes num dado parcelamento obtém autorização edilícia municipal para, nesses imóveis, construir prédio, por exemplo, com 12 andares.

Um possível obstáculo: na instituição desse parcelamento, nos termos do inciso VII do art. 26 da Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979 −que prevê a «declaração das restrições urbanísticas convencionais do loteamento, supletivas da legislação pertinente»−. assinaram-se restrições pactuadas conflitantes com o novo projeto de edificação, indicando-se um limite vertical da construção no lugar a, por exemplo, seis andares.

A controvérsia nos tribunais: para a prevalência dessas restrições levadas ao registro de imóveis, a associação de moradores do lugar ajuizou uma demanda judicial, mas é controversa a solução pretoriana, como se pode ver, a título ilustrativo, dos julgados que seguem:

«(…) 5. A Lei Lehmann (Lei 6.766/1979) contempla, de maneira expressa, as <restrições urbanísticas convencionais do loteamento, supletivas da legislação pertinente> (art. 26, VII). Do dispositivo legal resulta, assim, que as restrições urbanístico-ambientais legais apresentam-se como normas-piso, sobre as quais e a partir das quais operam e se legitimam as condicionantes contratuais, valendo, em cada área, por isso mesmo, a que for mais restritiva (= regra da maior restrição).

6. Em decorrência do princípio da prevalência da lei sobre o negócio jurídico privado, as restrições urbanístico-ambientais convencionais devem estar em harmonia e ser compatíveis com os valores e exigências da Constituição Federal, da Constituição Estadual e das normas infraconstitucionais que regem o uso e a ocupação do solo urbano.

7. Negar a legalidade ou legitimidade de restrições urbanístico-ambientais convencionais, mais rígidas que as legais, implicaria recusar cumprimento ao art. 26, VII, da Lei Lehmann, o que abriria à especulação imobiliária ilhas verdes solitárias de São Paulo (e de outras cidades brasileiras), como o Jardim Europa, o Jardim América, o Pacaembu, o Alto de Pinheiros e, no caso dos autos, o Alto da Lapa e a Bela Aliança (City Lapa).

8. As cláusulas urbanístico-ambientais convencionais, mais rígidas que as restrições legais, correspondem a inequívoco direito dos moradores de um bairro ou região de optarem por espaços verdes, controle do adensamento e da verticalização, melhoria da estética urbana e sossego.

9. A Administração não fica refém dos acordos <egoísticos> firmados pelos loteadores, pois reserva para si um ius variandi, sob cuja égide as restrições urbanístico-ambientais podem ser ampliadas ou, excepcionalmente, afrouxadas.

10. O relaxamento, pela via legislativa, das restrições urbanístico-ambientais convencionais, permitido na esteira do ius variandi de que é titular o Poder Público, demanda, por ser absolutamente fora do comum, ampla e forte motivação lastreada em clamoroso interesse público, postura incompatível com a submissão do Administrador a necessidades casuísticas de momento, interesses especulativos ou vantagens comerciais dos agentes econômicos» (STJ, REsp 302.906, j. 26-8-2010, Rel. Min. Herman Benjamin).

Diversamente, ao decidir-se o RE 1.774.818 (j. 19-5-2020), o mesmo STJ, com o voto de relatoria da Min. Nancy Andrighi, assentou:

«(…) 4. Na jurisprudência deste Tribunal Superior, não há fundamento para a pretensão da recorrente de fazer prevalecer uma restrição convencional originária, imposta unilateralmente pelo loteador, frente à legislação municipal que, de forma fundamentada, abranda essas restrições.

5. Não há como opor uma restrição urbanística convencional, com fundamento na Lei 6.766/79, à legislação municipal que dispõe sobre o uso permitido dos imóveis de determinada região. De fato, já em conformidade com a nova ordem constitucional, a Lei 9.785/99 alterou a Lei de Parcelamento do Solo Urbano, em seu art. 4º, § 1º, para reconhecer expressamente que essa competência é do município» (cit. das ementas).

O quadro possível das soluções: a chave para solver esse conflito entre as restrições convencionais e a norma urbanística posterior pode encontrar-se:

em que prevaleçam sempre as restrições convencionais (a despeito da lei posterior);

em que se apliquem sempre as normas pósteras (a despeito das restrições convencionais);

• em que se decida de maneira casuística, apreciando-se a maior ou menor relativa gradação de atendimento ao bem comum;

em que se conciliem, segundo a própria normativa, os interesses convencionais e públicos.

  Prosseguiremos na próxima semana.