Notário, para onde vais? (primeira parte)

Des. Ricardo Dip

           Quero aqui trazer-lhes à consideração −nestas nossas «Claves notariais e registrais»− o texto que elaborei, a pedido do Tabelião José Renato Vilarnovo Garcia, Presidente da seção do Rio de Janeiro do Colégio Notarial do Brasil, texto esse que se publicou no primeiro número da revista O notário contemporâneo (julho a setembro de 2023).

Tratarei de ler e glosar algumas das passagens desse texto, que repartirei em umas quatro exposições desta série.

Vamos começar, pois.

Ressente-se a cultura brasileira da história factológica de seu notariado. Essa falta não parece que deva imputar-se só nem principalmente ao fato, que não deixa de ser complicador, da necessidade de sindicar cinco séculos e tanto de atividades notariais no território brasileiro, porque pouco menos vive o notariado no Brasil do que existe, com sua constituição integral e largamente investigada, a família do notariado latino de que descende nosso próprio notariado. Mais aparenta que a dificuldade de investigar a história da atuação notarial no Brasil deva tributar-se à larga dimensão do território nacional, com sua conexa diversificação de costumes, propiciando a problematização da identidade tipológica do «notário brasileiro», já pela quantidade variada de fatos materiais que lhe digam respeito, já pela necessidade de distinção de sua mentalidade −poderia dizer-se regional− no tempo e no espaço (o Brasil são muitos Brasis).

O termo «notariado brasileiro» é, em acepção lógica, um conceito coletivo −institucional− equivalente ao conjunto real dos notários exercentes de seu ofício no território brasileiro; avaliar a importância desse notariado é, pois, julgar da relevância do modo de ser e do modo de agir dos notários brasileiros. Bem se compreende a observação de Vallet no sentido de que a alma do notariado é a pessoa do notário, ou, com outras palavras, a alma do notariado é o ato do notário, pois o ato do notário é o notário em ato.

Se não há, contudo, por agora, entre nós, estudos com escora singular bastante que levem a concluir solidamente acerca dos benefícios econômicos e jurídicos resultantes das atuações notariais −a que, em todo caso, não faltaria alguma sorte de intuição favorável, embora a duração no tempo nem sempre conspire em benefício da boa fama daquilo que permanece: isto o prova bastante a história de algumas organizações delituais−, não se impede de todo que se possa, contanto que se dispensem as características acidentais e o risco desta aposta intuitiva, considerar, em seu aspecto substancial, os traços −matizados de maneira peculiar− da pertença do notariado brasileiro (é dizer, do conjunto dos notários brasileiros) à família do notariado latino −e, especificamente, a seu ramo hispânico-lusitano−, do fato desse pertencimento podendo extrair-se, ainda que numa perspectiva abstrata e em pauta simplificadora e genérica, a importância consequente das atividades notariais no Brasil.

Uma gestação inicial

Ainda que, sob o prisma de seu conteúdo, o primeiro documento jurídico elaborado entre nós seja um parecer, datado de 1566, escrito pelo Padre Manoel da Nóbrega em favor da libertação dos índios escravos, antes disto, porém, já se produzira formalmente uma ata notarial, a célebre Carta de Pero Vaz de Caminha, documento emitido em 1º de maio de 1500[1].

O lugar da elaboração dessa ata, é verdade, propicia estimar nascidas com a ata de Caminha as atividades notariais no Brasil. Todavia, para que se reconhecessem, propriamente, as figuras do «notariado brasileiro» e, portanto, do «notário brasileiro» −e não a de um notário português atuando no Brasil− seria ainda necessário o tempo de gestação de uma identidade nacional brasileira. Não se terá ao certo a data em que essa identidade possa dizer-se res effecta. É cômodo reconhecê-la ultimada nos princípios do século XIX, quando, em 1815, o Brasil, elevando-se à condição de Reino unido ao de Portugal e de Algarve, adquirira o status de independência, objeto de reiteração, em 1822, com um ato que, em verdade, não independizou o Brasil já antes independente, mas, isto sim, divorciou-o da união com Portugal e Algarve (averbe-se que se tem às vezes desprezado o fato de que, com a separação decretada em 1822, sequer se adotou, entre nós, o critério do «rei natural», uma vez que Dom Pedro I não era brasileiro nato).

Parece razoável, porém, admitir que a independência de 1815 pressupunha uma identidade nacional brasileira. Se no século XVI, por exemplo, nada existia que se aparentasse com a ideia de uma nação brasileira, já no século XVII, assim o escreveu Gladstone Chaves de Melo, "começam a surgir certos elementos que, modificados, futuramente serão constitutivos da nacionalidade"[2]. À altura, os portugueses que vinham para cá, vinham frequentemente para aqui ficar; já havia gente nascida no território brasileiro: não era só viver no Brasil, era mais que isto, nascer no Brasil; Carlos Drummond de Andrade recolheu esta ideia da principalidade da «terra em que se nasce«, do sentimento da «terra pessoal», da «terra de que se provém»: "Alguns anos vivi em Itabira./ Principalmente nasci em Itabira". E Chaves de Melo, que também se remete a este poema –"Confidência do itabirano"−, acrescentou muito bem que é a consciência do passado aquilo que "marca, para o homem, a transição da infância à adolescência" (e o mesmo pode dizer-se das nações: é a memória vívida de sua história que faz emergir, aglutinante, o vouloir vivre colectif a que se referiu Le Fur).

Faltava-nos, entretanto, um elemento propulsor, uma ocorrência que impulsionasse o sentimento nacional, que pusesse à mostra a consciência de uma vida que se quer viver em comum. E este fator dinâmico que catalisou a nacionalidade brasileira deu-se com a invasão holandesa. É ainda nas páginas de Gladstone Chaves de Melo que se lê constituísse o holandês um corpo estranho à nação dos brasileiros, pois que o flamengo "era protestante, urbano, falava língua germânica, distinguindo-se, pois, vivamente do colonizador e plasmador: católico rural, românico". Urgente, então, era a tarefa de expulsar o invasor: "(…) uniram-se as três etnias nessa empresa. O resultado foi a descoberta de que havia algo em comum, de profundo, entre aqueles que arriscaram ou perderam a vida para combater um mesmo inimigo"[3]. Já se pode avistar, ainda que muito jovem, a nação brasileira.

[1] Veja-se, a propósito, brevitatis causa, Wilson Martins, História da inteligência brasileira. ed. T.A.Queiroz, São Paulo, 1976, vol. I, p. 45 et sqq.

[2] Gladstone Chaves de Melo, Origem, formação e aspectos da cultura brasileira, ed. Padrão, Rio de Janeiro, 1974, p. 115.

[3] Id., ib.