Des. Ricardo Dip
Conforme vimos nas exposições anteriores sobre o tema das instituições, tem-se que o notariado e o registro público são instituições corporativas, vale dizer, na expressão de Maurice Hauriou, institutions personnes, em que se acentua e predomina a ideia de uma obra a executar-se em benefício do grupo social em que se inserem essas mesmas instituições.
Em outras palavras, e ainda na trilha do que ensinou Hauriou, as instituições notariais e registrais caracterizam-se por
- uma ideia de obra a realizar-se numa dada comunidade −e essa ideia é a segurança jurídica;
- a existência de uma organização a serviço dessa ideia, com o escopo de realizá-la; e
- o consenso ou comunhão quanto à referida ideia de obra e de sua realização.
Reiteremos que essa ideia de obra a empreender não se confunde com as funções correspondentes a sua execução (essas funções são suscetíveis de alguma variação nos tempos e nos lugares) −funções, sublinhe-se, que resultam da particularização executória do empreendimento.
Mas se as funções podem −e em alguns casos devem− alterar-se, isso não pode chegar ao ponto de a ideia da obra, já com seus modos acidentais históricos de realização (nota bene!), possa modificar-se sem que se desatenda à continuidade institucional. Enfim, não há verdadeira instituição nacional sem permanência de sua substância concreta (ou seja, sem o modo determinativo que afeta essa substância).
Expliquemos um tanto mais: a universalidade da «ideia de obra» notarial e registral −é dizer, a vocação para realizar uma publicidade que visa a garantias jurídicas comunais− dita contornos genéricos das instituições do notariado e do registro público. Mas é só com a particularização organizatória nas diferentes comunidades políticas (p.ex., notariado estatal ou notariado privado? notário independente ou sob comando hierárquico?) que se singularizam, a parte obiecti, as instituições nacionais, e é a partir de suas dimensões históricas e circundantes que se forma a comunhão enraizadora (ou consenso radical) em cada comunidade, o que, já aqui a parte subiecti, autoriza reconhecer a existência e a identidade de uma instituição comunal; trata-se aqui do que se poderia dizer uma «vontade de notariado», uma «vontade de registro», tomando-se de empréstimo a referência de Hesse à «vontade de constituição».
Mas essa vontade institucional só é possível quando estejam presentes e definidas as particulares características históricas e circundantes da instituição. Trata-se, em outros termos, de um amor institucional, de uma profunda afeição ou sentimento por algo histórica e atualmente real.
É fácil ver que a contraposição entre, de um lado, essas características históricas e, de outro lado, as atualizadas, mitiga ou pode mesmo anular a comunhão, amortecer o amor institucional.
O caso institucional brasileiro do notariado −e, por descendência, de seu registro público− é o, historicamente, de sua filiação à família do notariado latino. É em suas características de latinidade que se foi sedimentando, ao largo do tempo, o complexo cultural que atraiu o correspondente consenso ou comunhão social no Brasil. Dito doutro modo: as instituições do notariado e do registro, entre nós, são caracterizadamente constituídas pelos princípios do notariado latino (p.ex., o notário é profissional do direito; o notário exerce função pública, mas não é funcionário público; o notário exercita arte liberal; o notário executa suas atividades de modo individual; o notário frui de independência jurídica em sua ordem, etc.).
Manifesto é que haveria uma ruptura institucional se, a pretexto de atendimento a exigências ora de mercado, ora de interesse burocrático, ora de ganância por poder ou avidez por bens materiais, ora, até mesmo, de preferências ideológicas, o notariado brasileiro fosse, súbita ou paulatinamente, destituído de seus qualificativos latinos.
Voltaremos ao tema.