Des. Ricardo Dip
O princípio da legalidade é um dos fundamentos próximos −ou vigas− do notariado latino.
O relevo desse princípio está em que a atuação do notário deve sempre balizar-se pela harmonização com o ordenamento jurídico, é dizer, com o direito posto, bem se advertindo que seria um contrassenso imaginar que um tabelião de notas pudesse menosprezar as leis vigentes e autorizar atos ou negócios atentatórios das normas de direito. Com efeito, uma função que se destina a conferir segurança jurídica não se afeiçoa a desconsiderar a compatibilidade da autorização notarial com o direito positivo, sequer a pretexto da liberdade própria do exercício de um profissional do direito.
A consciência do notário −e a despeito da reiterada confusão em que alguns incorrem ao adotar o conceito de «consciência» no molde kantiano e não à maneira clássica que a define como último juízo da razão prática−, é a norma subjetiva da actio notarii, mas ela é sempre sucessiva de normas objetivas de agir. Deste modo, decidir secundum conscientiam não é decidir com menosprezo das normas, mas, exatamente, concluir em conformidade com elas, mediante sua compreensão, a compreensão dos fatos e a interpretação entre normas e fatos.
Vallet acena preferir-se à ideia de legalidade a de juridicidade. E tem razão, porque, pelo princípio da legalidade, tem-se, sobretudo, uma espécie de obstáculo, de impedimento à prática de atos ilegais, ao passo em que, com a noção de juridicidade, alberga-se também o princípio da veracidade, inibindo-se a produção de documentos falsos. Além disto, o âmbito da juridicidade compreende alguma sorte de referência à ordem subalternante do direito, que é a moralidade, pois é de todo evidente que não se pode chamar «jurídico» algo que seja «imoral», embora, diversamente e ainda que de modo impróprio, possa admitir que uma conduta «imoral» esteja conformada à letra de alguma lei (ou cripto-lei) em vigor.
Tenha-se em conta, a propósito, que, em sociedades nas quais o mal é objetivo de políticas públicas, e, pois, objeto de «leis» (pseudo-leis), multiplicam-se casos em que se possa, de algum modo −ainda que impropriamente− falar-se em «legalidade de condutas imorais». Mas já não caberia, neste mesmo quadro, cogitar-se da juridicidade dessas condutas.
Rodríguez Adrados, após observar que, já no direito romano pós-clássico, impunham-se penalidades aos tabeliães que produzissem documentos em afronta das leis −e sanções graves como o confisco de bens e até mesmo o desterro−, salientou que a inserção da potestade da fé pública no ofício notarial acarretou algum desprestígio para o princípio da legalidade, que, entretanto, revalorizou-se com a lei notarial italiana de 1913, passando a considerar-se de maneira mais saliente nas legislações modernas.
Assim, no Brasil, a Lei 8.935/1994 (de 18-11) previu serem "infrações disciplinares que sujeitam os notários e os oficiais de registro às penalidades previstas nesta lei: I - a inobservância das prescrições legais ou normativas" (art. 31), norma que não contradiz a também legalmente prevista "independência no exercício de suas atribuições" (art. 28 da mesma Lei 8.935), porque essa independência −que é a própria da consciência do notário− sempre tem por pressuposto um fundamento de ordem objetiva (leis, costumes, natureza das coisas).
Prosseguiremos.