Des. Ricardo Dip
Prosseguindo o breve itinerário pelas «vigas» ou princípios próximos do notariado latino, queria referir a circunstância de que, em tempos de criticismo radical, nos quais tudo se põe em dúvida, a fé notarial, em seu modelo clássico, tem sido também objeto de assédios. Vão estes desde sua exageração −p.ex., entre nós, com a regra de atestação de tempo de posse na ata exigida para o processo extrajudicial de usucapião− até o extremo oposto de seu esvaziamento desconstrutivo (v.g., com a dispensa do relacionamento pessoal direto do notário com o objeto da fé), passando até pelo paradoxo de quem acene à exigência de provar-se a matéria da fé, o que implica, por si só, a negação da mesma fé.
Tenha-se em conta detidamente que há uma necessidade lógica no submetimento da razão, em princípio, à fé notarial, ainda que se trate aí de um submetimento que não impeça impugnações ao conteúdo da dação de fé pelo notário. O que se pede é, empregando-se aqui a dicção paulina, um rationabile obsequium, para a viabilidade normal da ordem jurídica. Nenhuma fé pública pode ser absoluta (veja-se Rafael Núñez Lagos, Los esquemas conceptuales del instrumento público, p. 19), mas, ainda apartada deste caráter absoluto, a fé notarial cumpre sua função ao superar ordinariamente a exigência de outras provas, de maneira que a credibilidade de um documento (ou seja, com seus adequados limites, a credibilidade do conteúdo desse documento) derive da só asseveração propter officium do notário.
Nem sempre foi assim. Um antigo ancestral do notário, o tabellio romanus, por exemplo, não tinha fides publica, como fez ver José Bono (Historia del derecho notarial español, tomo I, p. 51), mas, diversamente, o notário latino tem o atributo de fidem facere, ou seja, de conferir plena fides ao documento em cuja formalização intervenha, desde que o autorize em forma regrada (publica forma; cf. tomo I, p. 180).
A fé notarial consiste, essencialmente e em seu sentido mais importante, na adesão comunitária compulsória à verdade afirmada pelo notário, correspondente a uma realidade particular.
Sua causa próxima é o próprio notário, pessoa física, particular, segundo um aspecto, e também pública, segundo outro aspecto, pois nele se delegou uma potestade política, qual a de dar fé a documentos que ele autorize propter officium. E é à conta dessa publica potestas que a fé notarial impõe o vínculo jurídico de credentidade, é dizer, de preceituação compulsória de aderir à verdade afirmada pelo notário.
Assim, a fé notarial é uma fides publica potestatis, uma certeza imposta à comunidade de maneira obrigatória, certeza que é independente de o notário emanante possuir a auctoritas −ou seja, de um saber socialmente reconhecido. Deste modo, a fé notarial distingue-se de outra fé, a «fé do notário», porque esta não é fides potestastis, não deriva do poder socialmente reconhecido, mas, isto sim, procede da autoridade do notário, é dizer, de seu saber socialmente reconhecido.
Disto resulta que a fé do notário −fides auctoritatis notarii−, não fruindo, embora, de um estatuto compulsório de crença (scl., credentidade), ampara-se em um juízo de credibilidade, na convicção de ser razoável aderir à verdade anunciada por quem possui autoridade intelectual e moral.
Desta maneira, tanto mais os notários se elevem em bem exercitar seu ofício, com idoneidade prudencial e ética, mais se acomodarão a crença compulsiva e a crença efetiva nos documentos notariais: neste mesmo sentido, lembremo-nos que, do juramento que, ao início do século IX, era exigido dos escribas, no Reino longobardo, por Lotário I, que foi o terceiro Imperador do Sacro Império Romano do Ocidente, constava a exigência de serem os notários legibus eruditi et bonæ opinionis.
Com efeito, um dos mais alçados ideais do Notariado há de ser o de superar a discordância fática entre a fé notarial e a fé do notário, de tal maneira que a crença coativa no documento seja alimentada pela crença espontânea nele conaturalizada pelo costume notarial.