Sobre a ciência notarial e a ciência registral (parte 9)

Des. Ricardo Dip

 

O terceiro dos fundamentos históricos −ou pilares originantes− do notariado latino é o da delegação de parcela da soberania política, parcela esta que corresponde à da potestade da fé pública.

No direito germânico medieval era admitida a autotutela das pretensões de crédito, permitindo-se a adoção de medidas que iam da mera retenção de bens até atingir a coação pessoal do devedor, p.ex., com o exercício do direito de punho (Faustrecht) e  com a custódia do mesmo devedor (Einlagen), o que poderia estender-se ao fiador.

Deu-se, no entanto, que nem sempre os meios de garantia ou satisfação dos créditos chegava a bons resultados, sem contar, de maneira adicional, com os excessos muitas vezes praticados contra os devedores. Daí a paulatina adoção, que terminou por ser rotineira, do recurso a um processo judicial simulado, porquanto nenhum crédito era suscetível, então, de executar-se pelo poder político, sem que se instaurasse a actio iudicati, vale dizer, sem que a execução estivesse aparelhada por um título judicial (sententia, iudicatum).

Daí que, não sendo viável, a essa altura, a execução de título de origem extrajudicial, buscassem os credores a via pretoriana (processo in iure) e, depois, a judicial (processo in iudicio), instaurando-se processos simulados, com a intenção de obter-se uma garantia de futura satisfação do crédito. Nesses processos, ordinariamente, era convocado o devedor que, partícipe consensual da simulação, apresentava somente uma ligeira contestação diante do pretor, para que, com isto, presente, como quer que fosse, a litis contestatio, pudesse abrir-se, na sequência, o processo judicial; neste, ao revés da tímida contestação oferecida no processo in iure, o devedor confessava a imputação (confessio in iudicio, ou seja, não mais diante do pretor, mas, sim, à frente do iudex). Seguia-se, então, o proferimento da sententia iudicis, e com isto estava aparelhada a actio iudicati.

Esse processo simplificou-se logo, passando a admitir-se a confessio in iure (vale dizer que já não se exigia a contestatio in faciem prætoris), e, de conseguinte, concluía-se pela desnecessidade do processo in iudicio. Daí que, imediatamente, fosse concedida a actio iudicati mediante o direto pronunciamento do pretor.

Outra simplificação processual adveio com a dispensa do próprio juízo do pretor, substituindo-se a formalidade da sentença pretoriana pela extração direta de um mandado −que se denominava preceptum de solvendo− portador de força equivalente à da actio iudicati. Desse preceito de solvendo é que, por meio de sua desjudiciarização, resultou que se atribuísse diretamente a escribas extraforenses a atividade que era antes própria, primeiro dos iudices ordinarii e, por simplificação, dos prætores; assim, o preceptum de solvendo sucedeu-se pelo preceptum notariorum, o que se denominou, rotineiramente, cláusula guarentigia (vocábulo italiano, que tem a acepção de «garantia»).

Deste modo, mediante a extrajudiciarização da actio iudicati, atribuiu-se força executória a um título não judiciário, isto é, a um documento público notarial, documento público, note-se bem, mas documento de direito privado. Assim completou-se a gestação do notariado latino. Essa atribuição delegada aos notários tem seu núcleo na dação de fé pública, de modo que esta potestade −a da fé notarial− é o terceiro elementos constitutivo da latinidade do notário, mas, assinale-se, o único dos pilares que o notariado latino deve ao poder político (ou seja, ao estado).