“Exibir um documento compatível com a sua expressão de gênero torna sua vida infinitamente mais fácil”

“Exibir um documento compatível com a sua expressão de gênero torna sua vida infinitamente mais fácil”

Em entrevista à Anoreg/PR, Leticia Lanz, especialista em Gênero e Sexualidade, falou sobre alteração de nome e gênero nos cartórios por pessoas trans

 

A alteração de nome e gênero por pessoas transgêneras diretamente nos cartórios de Registro Civil é uma conquista para toda a sociedade, a fim de garantir direitos de liberdade e igualdade. Para falar sobre isso, a Associação dos Notários e Registradores do Estado do Paraná (Anoreg/PR) entrevistou Letícia Lanz, especialista em Gênero e Sexualidade e mulher transgênera.

Letícia Lanz é psicanalista e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em Gênero e Sexualidade pela mesma universidade. Economista pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em administração pela mesma instituição. Em 2020, foi candidata à prefeitura de Curitiba.

Em entrevista exclusiva à Anoreg PR, a psicanalista abordou as discussões que envolvem a alteração de nome e gênero nos Cartórios de Registros Civis e afirmou que, para ela, a retificação da certidão de nascimento significou uma reconquista de seus direitos como cidadã.

Confira a entrevista completa:

 

Anoreg/PR – A aprovação do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2018, possibilitou transgêneros a alterarem o nome biológico e o gênero diretamente nos Cartórios, tornando o processo menos burocrático. Como avalia essa mudança, acredita que todos têm acesso a esse direito?

Letícia Lanz – Uma mudança fundamental que, a rigor, desjudicionalizou e despatologizou, num único lance, a condição transgênera no Brasil. Com uma simples ida ao cartório, é possível trocar de nome e de sexo, sem qualquer interferência médica ou jurídica. Eu fiz a minha alteração ainda no ano de 2018 e foi muito simples e rápido, sem nenhum entrave burocrático além das certidões exigidas. Entretanto, boa parte da população transgênera, por falta de informação ou condições financeiras (o processo é dispendioso), ainda não tiveram acesso pleno aos benefícios desse direito. Mas o problema não para na simples mudança do nome civil. A partir da mudança, é necessário percorrer um longo caminho para mudar todos os registros e documentação da pessoa.

 

Anoreg/PR – Em sua opinião, como a garantia do direito à retificação no Registro Civil torna o acesso a direitos mais democrático?

Letícia Lanz – A sociedade está estruturada em cima do pilar do dispositivo de gênero, que classifica machos e fêmeas biológicos em homens e mulheres em virtude exclusivamente do órgão genital que apresentam ao nascer.  Tudo nesse mundo depende de a pessoa apresentar um sexo e um nome compatível com a sua aparência no dia a dia. Na medida em que uma pessoa transgênera pode exibir um documento compatível com a sua expressão de gênero no dia a dia, sua vida se torna infinitamente mais fácil, igual à de qualquer pessoa cisgênera. Tendo, portanto, pelo menos teoricamente, acesso a todos os processos sociopolíticos garantidos a homens e mulheres na nossa sociedade. Teoricamente porque, a despeito do documento compatível, o comportamento da sociedade em relação a pessoas transgêneras ainda é de “pé atrás”, de repúdio, invisibilização, violência e exclusão. Mas esse é outro capítulo da novela trans. 

 

Anoreg/PR – Como primeira mulher transgênera a se candidatar à prefeitura de Curitiba, acredita que esta conquista possa ser vista como um movimento que estimula pessoas trans a ocuparem mais esses espaços?

Letícia Lanz – Sim, com certeza. Embora, antes mesmo da concessão do STF, o nome social já era aceito pela justiça eleitoral. Eu mesma me candidatei a deputada federal em 2014 usando o meu nome social.

 

Anoreg/PR – Os Provimento nº 73/2018 e o Provimento nº 1/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) consideraram os princípios constitucionais da dignidade, da liberdade e da igualdade material, bem como a garantia do direito à autodeterminação da pessoa em relação ao próprio gênero. Como isso se dá na prática? Em sua opinião, os transgêneros têm estes princípios garantidos?

Letícia Lanz – Essa “garantia” não é, infelizmente, um dado estável, uma vez que não resultou de uma legislação específica, votada e aprovada pelo congresso nacional e sancionada pela presidência da república, mas de uma decisão do STF, a partir da interpretação da legislação já existente.

Assim, na prática, a qualquer momento, o congresso nacional poderá pôr em votação uma pauta anti-progressista e anti-direitos humanos que, se vencedora, poderá sobrepor-se inteiramente à interpretação da lei de forma favorável à população transgênera, ora em vigor. Assim, a mobilização pelos direitos da população transgênera deve continuar, tanto para barrar pautas anti-trans, e há muitas no congresso, quanto para tentar a aprovação de uma legislação específica.

 

Anoreg/PR – O Provimento nº 1/2021 alterou o parágrafo 3º do artigo 1º do Provimento nº 17/2018, que já permitia a alteração de prenome e gênero, sem necessidade de cirurgia de redesignação sexual ou tratamento hormonal. Como avalia estas mudanças, que significado elas têm para esta população?

Letícia Lanz – Antes desses provimentos, era um tormento sem fim uma pessoa transgênera conseguir a alteração do nome civil nos seus documentos. Alteração do sexo, então, nem se fala. Era necessário vencer uma imensa burocracia médico-jurídica que levava, em média, cerca de dois a cinco anos para uma pessoa comum, sem muitos recursos, já que uma pessoa trans com dinheiro conseguia romper a burocracia existente em questão de meses. Hoje, com uma simples ida ao cartório, a pessoa transgênera altera nome civil e sexo, sem maiores interveniências jurídicas ou médicas.

 

Anoreg/PR – A respeito dos pedidos apresentados ao STF sobre acesso de pessoas trans às especialidades médicas de acordo com suas necessidades biológicas no Sistema Único de Saúde (SUS), existem muitos entraves que impedem a realização de consultas em especialidades ligadas ao sexo biológico?

Letícia Lanz – Penso que não. O que pesa mesmo é a limitação de recursos por parte do SUS, algo limita e impede o atendimento integral das necessidades de saúde de toda a população brasileira – e não apenas para a população transgênera. O outro sério entrave, que considero tão ou mais importante que o anterior, é a falta de pessoal de saúde que saiba ao menos o que é uma pessoa transgênera e como incluí-la nos procedimentos habituais das unidades de saúde. Para se ter uma ideia, transgeneridade não é nem ao menos mencionada nos currículos dos cursos de medicina e psicologia do país. O último grande - e sério – entrave é a reserva e “rejeição estrutural” que a sociedade ainda possui com relação a pessoas transgêneras e que promove, de um lado, o apagamento dessas pessoas e, de outro, uma imensa reserva e distanciamento social no contato com elas no dia a dia.

 

Anoreg/PR – O que é preciso fazer para alcançar mais igualdade? Existem projetos neste sentido?

Letícia Lanz – A questão da igualdade é muito mais ampla e profunda do que uma simples aceitação das pessoas transgêneras pela sociedade. Aqui pesa muito as cortes transversais do perfil de cada pessoa transgênera. Por exemplo, pessoas trans ricas, são infinitamente menos destratadas, rejeitadas, invisibilizadas, violentadas e excluídas do que pessoas trans pobres, pretas e periféricas. Igualdade, no nosso país, é muito mais um problema de ampla desigualdade socioeconômica da população do que simplesmente uma simples oposição entre pessoas cis e trans.

 

Anoreg/PR – Infelizmente, o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas trans. Por qual motivo? Faltam políticas públicas específicas?

Letícia Lanz – Machismo estrutural, característica do patriarcalismo que ainda vigora na nossa sociedade. Um machismo hipócrita que tenta livrar-se da culpa de um comportamento por eles mesmos considerado impróprio, vilipendiando, violentando e matando pessoas transgêneras, sem dó nem piedade.

 

Anoreg/PR – O que espera para as futuras gerações de pessoas transgêneras?

Letícia Lanz – Que elas sejam aceitas como parte da normalidade sociocultural de qualquer comunidade. Que não exista mais essa separação espúria entre pessoas cisgêneras e pessoas transgêneras. Porque, se daqui, digamos, vinte anos, ainda for necessário movimentos em defesa dos direitos de pessoas transgêneras é sinal que todo o nosso esforço de militância, agora, no presente, não funcionou e deu errado. Aliás, o que eu espero mesmo é que não haja mais essa coisa estúpida de gênero, que só serve para dividir, hierarquizar e controlar os seres humanos em função do seu órgão genital.

 

Anoreg/PR – O que significou para você fazer a retificação de sua certidão de nascimento?

Letícia Lanz – Liberdade de movimento e reconquista dos meus direitos de cidadã que estiveram marcadamente obstruídos desde a minha transição.

 

Fonte: Assessoria de Comunicação Anoreg/PR