Des. Ricardo Dip
Autoridade notarial
O usus loquendi do vocábulo autoridade não beneficia sua necessária distinção quanto ao termo potestade (ou poder). Com efeito, de três modos pode compreender-se a palavra autoridade: no primeiro modo, com o sentido de mando, de supremacia de vontade, de domínio, poder, potestade; no segundo modo, com a acepção de posse (autoridade é, neste sentido, um atributo do vendedor de uma coisa, porque a possui); finalmente, no terceiro modo, é a reconhecida competência em determinados campos.
Ao notário convergem mais claramente dois destes significados: ele possui a autoridade-poder (mais exatamente, uma potestade, a própria da dação de fé pública) e também a autoridade como saber qualificado, consistente, em seu caso, no domínio da antiga ars dictandi -que se poderia dizer ars scribendi, a arte de escrever- e da especialização jurídica, mas e sempre enquanto esse domínio é prestigiado pelo reconhecimento comunitário.
Ao passo, efetivamente, em que a potestade de fé pública foi delegada, pela soberania política, na pessoa do notário, já a autoridade como saber qualificado pelo reconhecimento da comunidade emanou, por assim dizer, espontaneamente, da soberania social, ou seja, formou-se na própria comunidade e dela espraiou. Esta distinção é fundamental para aferir a natureza do notarius latinus.
O vocábulo autoridade provém do latim auctoritas, auctoritatis, e é um termo logicamente abstrato que é relativo ao concreto auctor, is (diz Michiel de Vaan: “The abstract noun them developed into concrete «who makes grow»”), e, já o afirmara S. Isidoro de Sevilha, nas Etimologias, auctor é palavra que “deriva de augere(desenvolver)”: o verbo augeo, a que corresponde o infinitivo augere, significa aumentar, acrescentar, crescer, ampliar (Ernout-Meillet), e auctor, pois, é o que acrescenta, faz crescer, é o fundador.
Mas há algo que permite um discrimen entre, de um lado, a ideia de “ter poder”, “ter potestade”, e, de outro lado, o conceito de “ter autoridade”. Bertrand de Jouvenel, observando que o termo autor compreende, de maneira comum, o compositor de uma obra, o pai, o ancestral, o fundador de uma família, de uma cidade, o Criador do universo, aponta, na sequência, uma concretização de sentido que lhe parece mais sutil (sens plus subtils): autor é aquele cujo conselho é seguido, aquele ao qual é preciso remontar para o encontro da verdadeira fonte das ações feitas por outrem (“auquel il faut remonter pour trouver la vraie source d’actions faites par autrui”). Nesta linha, célebre, justificadamente célebre, é a distinção ensinada por Álvaro D’Ors, para quem a autoridade é “saber socialmente reconocido”, “verdad socialmente reconocida”, e a potestade é apenas “voluntad de poder socialmente reconocida”. Deste modo, a autoridade compõe-se do saber do auctor com o reconhecimento ou prestígio social: Jouvenel disse muito bem que “l’homme se fait par la coopération”, e neste quadro, a autoridade consiste na “causa eficiente das reuniões voluntárias”.
Parece esclarecer-se com isto o conceito de auctoritas, como um saber ou força que se acrescenta de um reconhecimento: a autoridade não a tem, simpliciter, aquele que detenha o saber num dado campo, mas aquele cujo saber, nesse campo, é reconhecido pela comunidade. Sem o prestígio do reconhecimento social do saber não há autoridade. Coisa diversa do que se passa com a potestade, cujo reconhecimento é mera condição de seu exercício.
Temos de referir, na sequência, sobre as características históricas e as funções exercitadas pela autoridade dos notários, dos quais -é-me um tanto doloroso dizer- alguns há que parecem não se dar conta da imensa importância social da fruição dessa autoridade. Tema particularmente interessante é o da justificação singular dessa auctoritas. Prosseguiremos.
Fonte: CNB-PR
Foto: Studio Mary Soares