Averbação da extinção de legitimação de posse (segunda parte)

(da série Registros sobre Registros n. 425)

                                                             Des. Ricardo Dip

1.236. Retornamos, para tratar do averbamento da extinção da legitimação de posse, a noções já antes versadas nesta série «Registros sobre Registros». Parece convir esse regresso ao tema da legitimação possessória, cuja extinção é objeto do averbamento previsto no item 27 do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, e, ainda antes desse acercamento específico, também aparenta oportuno examinar, brevemente, a origem histórica desse instituto.

           Com efeito, o conhecimento de um instituto, pela perspectiva de sua sincronia −equivale a dizer, por seu funcionamento atual−, não dispensa, senão que, em rigor, exige, para melhor conhecer-se, a consideração de sua história. Tenha-se em conta a observação de que a sincronia, num universo dinâmico, é apenas um aspecto da diacronia.

           Demos uma vista d’olhos, na exposição imediatamente anterior desta série, sobre o caminho histórico das presúrias, que foram o modo com que os reinos cristãos −ou, em alguns tantos casos, nobres guerreiros, atuando de maneira privada− reconquistaram, na Península ibérica, territórios que haviam sido apossados por povos islâmicos. A recristianização dessa retomada de áreas concorreu com o estabelecimento do direito de propriedade a contar do fato da recuperação ou reconquista.

           Dessa instituição das presúrias derivou o sistema de capitanias hereditárias adotado no Brasil. A povoação do território brasileiro desgastava muito o erário de Portugal, e, já em 1504, quando Dom Manuel I, «O Venturoso», criou a Capitania da Ilha de São João, depois designada Capitania Fernando de Noronha, instituiu-se o sistema das capitanias.  Mas só mais tarde, com Dom João III, é que se deu a adoção mais extensa do sistema das capitanias. Hélio Vianna, não sem antes afirmar que esse sistema «não constituía novidade em Portugal», ensinou que era apenas uma adaptação do antigo modo "de doação dos bens da Coroa" (in História do Brasil, São Paulo, ed. Melhoramentos, 1994, p. 62). Lê-se, não diversamente, em Waldemar Martins Ferreira que, com a experiência portuguesa anterior na Madeira e nos Açores, estava «traçada a sorte do Brasil: dividir-se-ia em capitanias, como as ilhas do Atlântico» (in História do direito brasileiro, Rio de Janeiro -São Paulo, ed. Freitas Bastos, 1951, tomo I, p. 34), e em Boris Fausto:  «(…) lembremos que ao instituir as capitanias a Coroa lançou mãos de algumas fórmulas cuja origem se encontra na sociedade medieval europeia» (in História do Brasil, Edusp, 13.ed., São Paulo, 2009, p. 45).

           Ao tratarmos, em anterior exposição, da natureza jurídica das capitanias hereditárias, reportamo-nos ao princípio do uti possidetis, entendendo que, como aparente descendência da presúria, esse princípio foi o critério para a definição do domínio das terras nas Américas espanhola e portuguesa.

             Os dois principais aspectos com que parece deva considerar-se o instituto da presúria são: um, o de ela ser um fato ou ato de ocupação de terras; outro, o de esse fato ou ato emanar o direito de propriedade das terras apresadas. É verdade que, ao largo do tempo, foram progressivamente especializadas as condições pelas quais a ocupação de terras era válida como título de domínio, e essas condições devem ser consideradas em seu conjunto: p.ex., com a exigência do apossamento efetivo e não meramente nominal, com o interesse de povoamento das terras recuperadas, com o objetivo político de assegurar o poder sobre o território, com objetivo de recristianizar a cultura. É com esse conjunto −povoamento da terra, asseguração do poder político, sustentação econômica e dilatação da fé católica− que se estabeleceram as capitanias hereditárias no Brasil.

           Como se avista, o regime de sesmarias descendeu do regime das presúrias, derivando, pois, da experiência da Reconquista cristã. Em uma perspectiva diacrônica, portanto, a legitimação de posse emerge, no Brasil, como o reconhecimento da legitimidade das ocupações ditas «primárias» das terras que, por direito de invenção, eram da Coroa portuguesa. A esse propósito, bem é que se considera o disposto no art. 5º de nossa Lei imperial 601, de 18 de setembro de 1850:

«Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primaria, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas, ou com princípio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes:

§ 1º Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, compreenderá, além do terreno aproveitado ou do necessário para pastagem dos animais que tiver o posseiro, outro tanto mais de terreno devoluto que houver contiguo, contanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual às últimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha.

§ 2º As posses em circunstâncias de serem legitimadas, que se acharem em sesmarias ou outras concessões do Governo, não incursas em comisso ou revalidadas por esta Lei, só darão direito à indenização pelas benfeitorias.

Excetua-se desta regra o caso do verificar-se a favor da posse qualquer das seguintes hipóteses: 1ª, o ter sido declarada boa por sentença passada em julgado entre os sesmeiros ou concessionários e os posseiros; 2ª, ter sido estabelecida antes da medição da sesmaria ou concessão, e não perturbada por cinco anos; 3ª, ter sido estabelecida depois da dita medição, e não perturbada por 10 anos.

§ 3º Dada a excepção do parágrafo antecedente, os posseiros gozarão do favor que lhes assegura o § 1°, competindo ao respectivo sesmeiro ou concessionário ficar com o terreno que sobrar da divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se também posseiro para entrar em rateio igual com eles.

§ 4º Os campos de uso comum dos moradores de uma ou mais freguesias, municípios ou comarcas serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a prática atual, enquanto por Lei não se dispuser o contrário.»

           É vistoso, nesse assunto, o fato de que se esteja a tratar, com a legitimação, da viabilidade do registro de uma posse imobiliária. Era às possessões que se referia nosso antigo «registro do vigário», ou seja, o registro paroquial, como se lê nos arts. 4º e 5º da mencionada Lei imperial 601:

«Art. 4º Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, que se acharem cultivadas, ou com princípios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionário, ou do quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições, com que foram concedidas.

Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primaria, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas, ou com princípio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente (…).»

             Esse registro paroquial era só referente ao fato possessório, e isso se foi acolhendo pela jurisprudência pretoriana, porque, decidiu-se, é «pressuposto essencial para a propositura da ação demarcatória que seja o autor proprietário do imóvel demarcado» (STJ, Rel. Min. Dias Trindade) e não mero possuidor; isso veio a confirmar-se em prestimosa decisão relatada pelo Min. Sidnei Beneti: «Não basta, pois, a titularidade de Carta de Sesmaria, que sem dúvida constitui um título, mas não de propriedade, para que automaticamente se tenha adquirido o direito de propriedade, para o qual necessário também o completamento do título com a posse e, em seguida, a transcrição no Registro de Imóveis, para que se configure, juridicamente, o domínio» (no mesmo sentido: STF -RE 79.828, Rel. Min. Néri da Silveira: o registro paroquial «não induz propriedade», sendo mero «fato probante da posse».

           Prosseguiremos.