Averbação das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade e do fideicomisso (primeira parte)

(da série Registros sobre Registros n. 399)

                                                  Des. Ricardo Dip

1.199.         De quatro coisas −é dizer melhor, de quatro títulos em sentido material− cuida o item 11 do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, alistando hipóteses de averbação, no ofício imobiliário, de cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, bem como de fideicomisso.

                  Quanto às primeiras três hipóteses −referíveis à inalienabilidade, à impenhorabilidade e à incomunicabilidade−, tenhamos logo em conta que a lei registral assinala serem averbáveis as cláusulas que as imponham.

                  Isso leva de pronto a duas observações:

                  •      primeira, a de que se exclui a averbação de um contrato que preveja, como objeto principal (rectius: o contrato de não alienar) e caráter jurídico real, a inalienabilidade, a impenhorabilidade e a incomunicabilidade, já porque uma possibilidade inscritiva autônoma dessas restrições à dinâmica da propriedade −com reflexo creditório− implicaria uma contraposição essencial ao atributo da disponibilidade do domínio; além disso, renderia ensejo a que o dominus pudesse excluir seus próprios bens da esfera de constrição por inadimplemento de débitos. Ou seja, uma ofensa tanto à natureza das coisas, quanto à boa fé nos negócios.

                  Calha ver, no entanto, que essa vedação ao contrato de não alienar, ou seja, ao pacto que torne algo inalienável pela só vontade dos contratantes, se não pode impor-se com natureza real −é dizer, para opor-se erga omnes− não por isso responde a uma outra questão: a de sua viabilidade com caráter jurídico pessoal. Ou seja, quer-se agora saber se um ajuste autônomo de inalienabilidade (com seus consequentes de impenhorabilidade e de incomunicabilidade) seria admissível, no direito brasileiro, tal como o prevê a segunda parte do § 137 do Código civil alemão. Ao início, esse dispositivo da lei germânica enuncia: «A faculdade de disposição de um direito alienável não pode ser excluída, nem limitada por negócio jurídico» (em tradução livre), prosseguindo, em remate: «A eficácia de uma obrigação de não dispor de um direito semelhante não é afetada por esse preceito» (outra vez, em livre tradução; a ênfase gráfica não é do original).

                  Não parece impossível, no direito brasileiro atual, a adoção de símile ajuste previsto no direito alemão, desde que se entenda (i) corresponder a uma obrigação de não fazer, com natureza, pois, estritamente creditória, pessoal, e (ii) ser um pacto insuscetível de acesso no registro imobiliário (cf., nesse sentido, Serpa Lopes, Tratado…, item 523, c).

•                Segunda observação: a Lei 6.015 prevê o averbamento de cláusulas negociais, de modo que é comum dizer-se não se justificaria a averbação da inalienabilidade, da impenhorabilidade e da incomunicabilidade legais.

                  Isso, no entanto, comporta uma distinção.

                  Quanto aos bens públicos, lê-se no art. 100 do Código civil brasileiro de 2002, que os «de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar», interditando até possa-lhe o domínio alterar-se por usucapião (art. 102), admitindo-se somente a alienação dos bens públicos dominicais (art. 101).

                  Já quanto aos bens particulares, viabiliza-se o averbamento da indisponibilidade legal (art. 247 da Lei 6.015: «Averbar-se-á, também, na matrícula, a declaração de indisponibilidade de bens, na forma prevista na Lei»; cf. ainda o bloqueio a que se referem os §§ 3º e 4º da mesma Lei 6.015).  E, no entanto, a indisponibilidade tem, em rigor, o mesmo sentido que a inalienabilidade.

1.200.         Saliente-se, por evidente: a inalienabilidade, a impenhorabilidade e a incomunicabilidade averbáveis no ofício imobiliário hão de ser objeto de ajuste relativo a bem imóvel.

                  Daí que a Lei 6.015, de 1973, falando na inscrição, por meio de averbamento, de cláusulas de inalienabilidade, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade, remete-se implicitamente a negócios imobiliários. Por outro aspecto, melhor pareceria dissesse averbáveis a inalienabilidade, a impenhorabilidade e a incomunicabilidade, e não as cláusulas −isto é, enquanto fórmulas adjetas a um contrato− com que aqueles gravames se instrumentam.

                  Uma cláusula contratual é um ajuste que impõe condições, encargos ou termos em um pacto. As cláusulas relativas à inalienabilidade, à impenhorabilidade e à incomunicabilidade, são cláusulas acessórias ou adjetas, porque secundam o objeto principal do contrato.

                  Como se deixou dito, não pode a vontade contratante determinar, com efeito erga omnes, o que é ou não alienável, embora isso possa admitir-se como previsão de lei.

1.201.         Inalienabilidade é o termo logicamente abstrato que se remete a uma restrição singular à alienação −ou disposição− de uma dada coisa.

                  Desde que a lei admita, por ato jurídico, uma clausulação de ser indisponível determinado bem, podem ajustá-la os pactantes (e ainda, unilateralmente, nas hipóteses de doação e de testamento).

                  Ademar Fioranelli, a quem se deve uma das melhores, senão a melhor de todas as exposições contemporâneas acerca desse tema, indica a divisão das cláusulas de inalienabilidade juridicamente admissíveis em nosso direito: (i) absoluta, (ii) relativa, (iii)  vitalícia e (iv) temporária.

                  A primeira −inibindo a alienação a não importa quem; a segunda, permitindo, subjetivamente, a alienação a determinadas pessoas, ou, objetivamente, compreendendo apenas alguns bens de uma herança; a terceira, estendendo-se por toda a vida do beneficiado, extinguindo-se com sua morte (ou seja, não se trata de uma inalienabilidade perpétua, qual a que durasse até depois da morte do favorecido; essa inalienabilidade perpétua entende-se inviável em nosso direito, segundo a jurisprudência doutrinária e a pretoriana, como o faz ver Fioranelli −Direito registral imobiliário, p. 159-160); por fim, a quarta espécie de cláusula de inalienabilidade é a temporária, que, por sua vez, pode subdividir-se em cláusula condicional e cláusula terminativa; aquela, tem sua vigência subordinada, resolutivamente (é dizer, para que se extinga), ao adimplemento de uma condição prevista no ajuste; já a cláusula terminativa tem indicação de prazo (vigor por determinado período temporal: dez anos, quinze anos, etc.).                   Prosseguiremos, tratando das hipóteses legais de admissibilidade das cláusulas restritivas.