(da série Registros sobre Registros n. 400)
Des. Ricardo Dip
1.202. Estamos tratando da averbação imobiliária das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, bem como do averbamento do fideicomisso no ofício de imóveis.
Conforme vimos na exposição anterior (n. 399), dois pontos devem, sobretudo, considerar-se quando se cuida de saber quais as situações suscetíveis da versada clausulação:
• primeiro: as vontades pactantes não podem, em princípio, determinar por si próprias, com efeito erga omnes, o que é ou não passível de alienação; de não ser assim, haveria uma conspiração contra o conceito mesmo de propriedade e uma barreira inoportuna à dinâmica das riquezas;
• segundo: a lei, sim, pode admitir que, mediante ato jurídico, clausule-se de indisponibilidade determinado bem, hipótese legal em que podem ajustá-la os contratantes −p.ex., com a instituição do bem de família−, mas também podem os doadores e testadores impor essas cláusulas.
Vejamos, por primeiro, o tema da exceção à inadmissibilidade de impor-se a nota de indisponível nos negócios jurídicos onerosos.
Comecemos aqui por uma concisa referência à distinção entre negócios onerosos e negócios gratuitos, guiando-nos, brevitatis causa, pela segura doutrina de Manuel Domingues de Andrade, nas páginas de Teoria geral da relação jurídica (ed. Almedina, Coimbra, 1974).
Um negócio −ou contrato− oneroso (também dito correspectivo) é o em que estão pressupostas prestações de ambas as partes pactuantes (credor e devedor); prestações, para mais, equivalentes, tal que a vantagem de uma corresponda a um ponderável benefício da outra. Dão-nos exemplos de negócios onerosos a compra e venda, a permuta, a locação.
De maneira contraposta ao negócio oneroso, temos o negócio gratuito ou a título gratuito, em que uma das partes recebe uma vantagem sem que a outra lhe dê alguma contrapartida.
Em princípio, como ficou dito, não podem impor-se as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade nos negócios onerosos. Essa vedação é implícita na ordem normativa, salva a explicitude da hipótese da instituição do bem de família.
Todavia, há, além disso, uma hipótese em que pode falar-se numa possibilidade bastante razoável de admitir-se essa clausulação em título oneroso: trata-se de um dúplice negócio jurídico, envolvendo uma compra e venda conjugada sucessivamente a uma doação monetária para pagamento do preço. Assinalável é esse passo negocial: em rigor lógico, a doação é aí um antecedente da compra e venda, e é por isso que se admitirá a clausulação da primeira e a passagem em seguida para a compra e venda. Essa última opera como uma dada condição do negócio logicamente anterior.
Daí vem algo a considerar: há nesse quadro uma só aparente exceção em favor da imposição das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade em negócio oneroso, pois o que atrai a imposição é o negócio gratuito antecedente à compra e venda.
E por que ainda se falaria em «dúplice negócio»? Porque haverá dois (ou até mais negócios jurídicos) num só título formal.
Recolhamos, no entanto e a propósito, a doutrina exposta por Ademar Fioranelli (in Das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, ed. Almedina -Cenor, Coimbra, 2024, p. 59-62).
A hipótese é a de que, prima facie, em dado negócio de compra e venda, terceiro intervenha doando ao comprador numerário bastante para a aquisição do imóvel objeto da referida compra a venda, apondo-se, entretanto, a condição de esse imóvel gravar-se com as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. Admite-se ainda, observa Fioranelli, a concomitante instituição de usufruto em prol do doador.
Trata-se aqui da «doação modal», é dizer: uma doação de pecúnia com a condição de que se adquira um determinado imóvel gravado por inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade.
Essa doação modal −ou, por outra perspectiva, dúplice contrato− pode ser veiculada, argumenta Ademar Fioranelli, rererindo-se a julgados do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, num único título formal, em única escritura pública, julgados de que nosso autor extrata:
«a) O título instrumenta negócio jurídico de doação de dinheiro para aquisição de imóvel, com imposição de cláusulas restritivas incidente sobre o imóvel, compatível com o sistema jurídico pátrio, espelhando a real vontade dos contratantes, inexistindo qualquer vedação expressa na legislação que impeça a realização de tais ajustes e o consequente acesso ao Registro Imobiliário.
b) Atende o interesse do usuário que, ao adotar solução já admitida pela jurisprudência, deixa de arcar com gastos desnecessários, se obrigado fosse a praticar dois atos: o da aquisição do bem pelo doador do numerário e o da subsequente doação, rigorismo formal extremado e desnecessário.
c) A origem da imposição do ônus repousa não na compra e venda pelo donatário com o dinheiro recebido em doação, mas sim nesta, o que legitima as restrições impostas, apesar de não ser o doador o transmitente do bem onerado com as cláusulas ou mesmo o usufruto constituído em favor do doador.»
Esses fundamentos são bastante persuasivos, sobretudo o das vantagens econômicas −de esforços, de tempos e de custos monetários− com a adoção do entendimento perfilhado por Ademar Fioranelli e pela tradicional justiça administrativa paulista.
Sem embargo, não se pode passar ao largo da razoabilidade da tese oposta, assim a sustentada por Sergio Jacomino, a que se reporta Fioranelli.
E, com efeito, a questão −de que não nos vamos ocupar aqui, por brevidade de causa− pode aportar seu caráter de discussão no tema não só da própria cindibilidade do título formal, senão que, também e de modo reverso, numa controversa não cindibilidade do título material, o que faria emergir uma figura negocial autônoma e complexa, empolgando unitária e conjuntamente a doação e a compra e venda.
Prosseguiremos.